O carteiro estendeu o telegrama. Carlos Alberto não agradeceu e enquanto
abria o envelope, uma profunda ruga sulcou-lhe a testa. Uma expressão
mais de surpresa do que de dor tomou-lhe conta do rosto. Palavras breves e
incisas:
- Seu pai faleceu. Enterro 18horas. Mamãe;
Carlos Alberto continuou parado, olhando para o vazio. Nenhuma lágrima
lhe veio aos olhos, nenhum aperto no coração. Nada!
Era como se houvesse morrido um estranho. Por que nada sentia pela morte
do velho?
Com um turbilhão de pensamentos confundido-o, avisou a esposa, tomou o ônibus
e se foi, vencendo os silenciosos quilômetros de estrada enquanto a cabeça
girava a mil.
No íntimo, não queria ir ao funeral e, se estava indo era apenas para
que a mãe não ficasse mais amargurada. Ela sabia que pai e filho não se
davam bem.
A coisa havia chegado ao final no dia em que, depois de mais uma chuva de
acusações, Carlos Alberto havia feito as malas e partido prometendo
nunca mais botar os pés naquela casa.
Um emprego razoável, casamento, telefonemas à mãe pelo Natal, Ano Novo
ou Páscoa... Ele havia se desligado da família não pensava no pai e a
última coisa na vida que desejava na vida era ser parecido com ele.
O velório: poucas pessoas.
A mãe está lá, pálida, gelada, chorosa. Quando reviu o filho, as lágrimas
correram silenciosas, foi um abraço de desesperado silêncio. Depois, ele
viu o corpo sereno envolto por um lençol de rosas vermelho - como as que
o pai gostava de cultivar.
Carlos Alberto não verteu uma única lágrima, o coração não pedia.
Era como estar diante de um desconhecido um estranho, um...
O funeral: o sabiá cantando, o sol se pondo.
Ele ficou em casa com a mãe até a noite, beijou-a e prometeu que
voltaria trazendo netos e esposa para conhecê-la. Agora, ele poderia
voltar à casa, porque aquele que não o amava, não estava mais lá para
dar-lhe conselhos ácidos nem para criticá-lo
Na hora da despedida a mãe colocou-lhe algo pequeno e retangular na mão.
- Há mais tempo você poderia ter recebido isto - disse. - Mas,
infelizmente só depois que ele se foi eu encontrei entre os guardados
mais importantes...
Foi um gesto mecânico que, minutos depois de começar a viagem, meteu a não
no bolso e sentiu o presente. O foco mortiço da luz do bagageiro revelou
uma pequena caderneta de capa vermelha. Abriu-a curioso.
Páginas amareladas. Na primeira, no alto, reconheceu a caligrafia firme
do pai:
"Nasceu hoje o Carlos Alberto. Quase quatro quilos! O meu primeiro
filho, um garotão!. Estou orgulhoso de ser o pai daquele que será a
minha continuação na Terra!".
À medida que folheava, devorando cada anotação, sentia um aperto na
boca do estômago, mistura de dor e perplexidade, pois as imagens do
passado ressurgiram firmes e atrevidas como se acabassem de acontecer!
"Hoje, meu filho foi para escola. Está um homenzinho! Quando eu vi
ele de uniforme, fiquei emocionado e desejei-lhe um futuro cheio de
sabedoria. A vida dele será diferente da minha, que não pude estudar por
ter sido obrigado a ajudar meu pai. Mas para meu filho desejo o melhor. Não
permitirei que a vida o castigue".
Outra página,
"Carlos Alberto me pediu uma bicicleta, meu salário não dá, mas
ele merece porque é estudioso e esforçado. Fiz um empréstimo que espero
pagar com horas extras".
Carlos Alberto mordeu os lábios. Lembrava-se da sua intolerância, das
brigas feitas para ganhar a sonhada bicicleta. Se todos os amigos ricos
tinham uma, por que ele também não poderia ter a sua?
E quando, no dia do aniversário, a havia recebido, tinha corrido aos braços
da mãe sem sequer olhar para o pai. Ora, o "velho" vivia
mal-humorado, queixando-se do cansaço, tinha os olhos sempre vermelhos...
e Carlos Alberto detestava aqueles olhos injetados sem jamais haver
suspeitado que eram de trabalhar até a meia-noite para pagar a
bicicleta... !
"Hoje fui obrigado a levantar a mão contra meu filho! Preferia que
ela tivesse sido cortada, mas fui preciso tentar chamá-lo á razão,
Carlos Alberto anda em más companhias, tem vergonha da pobreza dos pais
e, se não disciplinar amanhã será um marginal."
"É duro para um pai castigar um filho e bem sei que ele poderá me
odiar por isso; entretanto, devo educá-lo para seu próprio bem."
"Foi assim que aprendi a ser um homem honrado e esse é o único modo
que sei de ensiná-lo".
Carlos Alberto fechou os olhos e viu toda a cena quando por causa de uma
bebedeira, tinha ido para a cadeia e naquela noite, se o pai não tivesse
aparecido para impedi-lo de ir ao baile com os amigos...
Lembrava-se apenas do automóvel retorcido e manchado de sangue que tinha
batido contra uma árvore... Parecia ouvir sinos, o choro da cidade
inteira enquanto quatro caixões seguiam lugubremente para o cemitério.
As páginas se sucediam com ora curtas, ora longas anotações, cheias das
respostas que revelam o quanto, em silêncio e amargura, o pai o havia
amado. O "velho" escrevia de madrugada.
Momento da solidão, num grito de silêncio, porque era desse jeito que
ele era, ninguém o havia ensinado a chorar e a dividir suas dores, o
mundo esperava que fosse durão para que não o julgassem nem fraco e nem
covarde.
E, no entanto, agora Carlos Alberto estava tendo a prova que, debaixo
daquela fachada de fortaleza havia um coração tão terno e cheio de
amor.
A ultima pagina. Aquela do dia em que ele havia partido:
"Deus, o que fiz de errado para meu filho me odiar tanto? Por que sou
considerado culpado, se nada fiz, senão tentar transformá-lo em um homem
de bem?"
"Meu Deus, não permita que esta injustiça me atormente para sempre.
Que um dia ele possa me compreender e perdoar por eu não ter sabido ser o
pai que ele merecia ter."
Depois não havia mais anotações e as folhas em branco davam a idéia de
que o pai tinha morrido naquele momento, Carlos Alberto fechou depressa a
caderneta, o peito doía. O coração parecia haver crescido tanto, que
lutava para escapar pela boca. Nem viu o ônibus entrar na rodoviária,
levantou aflito e saiu quase correndo porque precisava de ar puro para
respirara aurora rompia no céu e mais um dia começava.
"Honre seu pai para que os dias de sua velhice sejam tranqüilos!"
- certa vez ele tinha ouvido essa frase e jamais havia refletido o na
profundidade que ela continha.
Em sua egocêntrica cegueira de adolescente, jamais havia parado para
pensar em verdades mais profundas.
Para ele, os pais eram descartáveis e sem valor como as embalagens que são
atiradas ao lixo. Afinal, naqueles dias de pouca reflexão tudo era
juventude, saúde, beleza, musica, cor, alegria, despreocupação e
vaidade.
Não era ele um semideus? Agora, porém, o tempo o havia envelhecido,
fatigado e também tornado pai aquele falso herói.
De repente. No jogo da vida, ele era o pai e seus atuais contestadores.
Como não havia pensado nisso antes? Certamente por não ter tempo, pois
andava muito ocupado com os negócios, a luta pela sobrevivência, a sede
de passar fins de semana longe da cidade grande, a vontade de mergulhar no
silêncio sem precisar dialogar com os filhos.
Ele jamais tivera a idéia de comprar uma cadernetinha de capa vermelha
pala anotar uma à frase sobre seus herdeiros, jamais lhe havia passado
pela cabeça escrever que tinha orgulho daqueles que continuam o seu nome.
Justamente ele, que se considerava o mais completo pai da Terra?
Uma onda de vergonha quase o prostrou por terra numa derradeira lição de
humildade. Quis gritar, erguer procurando agarrar o velho para sacudi-lo e
abraçá-lo, encontrou apenas o vazio.
Havia uma raquítica rosa vermelha num galho no jardim de uma casa, o sol
acabava de nascer. Então, Carlos Alberto acariciou as pétalas e
lembrou-se da mãozona do pai podando, adubando e cuidando com amor. Por
que nunca tinha percebido tudo aquilo antes?
Uma lágrima brotou como o orvalho, e erguendo os olhos para o céu
dourado, de repente, sorriu e desabafou-se numa confissão aliviadora:
- Se Deus me mandasse escolher, eu juro que não queria ter tido outro pai
que não fosse você velho! Obrigado por tanto amor, e me perdoe por haver
sido tão cego.
Para quem já teve e para quem tem um pai...
Maktub
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