A família oculta de Jesus
Textos rejeitados pela Igreja dizem que o avô de Cristo era
um rico comerciante
de gado, a avó era estéril e que Maria teve outros filhos
A maioria dos fiéis não ousa imaginar a infância de
Cristo como a de um menino mágico, capaz de fazer pássaros de barro
voar, andar sobre raios de sol ou puxar amiguinhos para brincar através
de frestas de janelas. Natural. A Igreja sempre rejeitou textos como o Livro
da Infância do Salvador, do qual foram extraídas essas histórias,
e os evangelhos apócrifos, que contam em detalhes a vida do Messias.
Por conta disso, tudo o que se sabe sobre Jesus é o que está nos
evangelhos canônicos. Eles simplesmente ignoram seus avós, Ana - livre
da esterilidade por intervenção divina - e Joaquim, um milionário que
sempre pagava em dobro suas oferendas a Deus. Tampouco contam como Maria
foi concebida ou se Jesus teve irmãos. São essas as histórias que as
editoras começam a revelar, numa profusão nunca vista de livros sobre
Jesus e sua família.
A mais recente obra sobre a vida familiar de Cristo é tão cheia de
novidades que parece uma provocação. Tiago, Irmão de Jesus,
lançado com certo atraso no Brasil pela editora Record, contesta o
dogma da virgindade perpétua de Maria e assegura que essa não é
afirmada em nenhuma passagem do Novo Testamento.
O autor, Pierre-Antoine Bernheim, apresenta Tiago, chamado o Justo,
como irmão uterino de Cristo, morto 30 anos após sua crucificação. E
vai além: sustenta que Tiago, martirizado, foi até mais influente que
Pedro na Igreja primitiva, justamente pelo parentesco com o Messias.
Pedro e outros apóstolos defendiam a difusão da mensagem cristã para
uma comunidade unificada de judeus e gentios. Tiago, não. Temia,
segundo o estudioso Bernheim, que isso pudesse provocar um movimento de
renovação dentro do judaísmo ou criar uma religião afastada de suas
raízes.
Num texto apócrifo, Evangelho dos Hebreus, que a Igreja ignora, mas
muitos estudiosos aceitam pelo valor histórico, o Cristo ressuscitado
aparece pela primeira vez ao suposto irmão Tiago, o que estabelece sua
preeminência sobre Pedro como autoridade suprema da Igreja. São Jerônimo
jamais aceitou que Tiago fosse irmão de Jesus. Era seu primo, segundo o
tradutor da Bíblia. Tiago seria filho de uma irmã de Maria que tinha o
mesmo nome, Maria de Cléofas. A tradição católica admitiu sua teoria
e acabou adotando-o como Tiago Menor, por oposição a Tiago Maior,
filho de Zebedeu, ambos santos.
Intrigado com a implicância que os evangelistas tinham com os
parentes de Jesus, o jornalista A.N. Wilson, autor de Jesus, um
Retrato do Homem (Ediouro), faz outra afirmação chocante. Diz que
o primeiro casamento do carpinteiro José, antes de conhecer a mãe de
Cristo, 'foi provavelmente inventado para satisfazer àqueles que, como
os atuais católicos romanos, eram instigados a acreditar na virgindade
perpétua de Maria'. O jornalista recorre ao Evangelho de São Marcos
para afirmar que Jesus fazia parte de uma grande família e teve quatro
irmãos - Tiago, José, Simão e Judas - e duas irmãs. E mais: lembra
que praticamente todas as referências à família, tanto nos evangelhos
canônicos como nos apócrifos, são de conflito. Os parentes de Jesus
seriam briguentos. Nesses textos, observa Wilson, Jesus surge como homem
rude, que repreende a mãe, abandona o lar, renuncia à família e parte
para pregar.
O ex-jesuíta americano Jack Miles, autor do livro Cristo, uma Crise
na Vida de Deus (Companhia das Letras), sustenta que esse
comportamento por vezes áspero estava de acordo com o de um ser com
poder divino, que não queria parecer excepcional com base nessa força.
O Filho do Homem, argumenta o escritor, simplesmente poderia ter
decidido tornar-se humano sem começar sua existência no útero de uma
mulher, dispensando a família. Mas, se Deus estava 'irrecuperavelmente
envolvido' no processo humano com esse nascimento, por que não teria
casado, experimentado sexo e constituído família?, questiona Miles.
Segundo o livro Mãe - A História de Maria, a ser lançado
em maio pela Editora Mercuryo, uma parteira compartilhou a mesma dúvida
sobre a castidade da mãe do bebê Jesus e ultrapassou os limites da decência
em sua pesquisa. Curiosa, a parteira Salomé queimou a mão ao tocar
Maria com os dedos para atestar sua virgindade. Responsável pela
compilação do volume, a editora Júlia Bárány diz que adotou como
fonte principal para contar essa e outras histórias o Proto-Evangelho
de Tiago, um apócrifo do século II teoricamente escrito pelo discutido
irmão de Jesus citado nas epístolas paulinas.
ANTONIO GONÇALVES FILHO
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