O
duro país dos pequenos
ELIANE
BRUM
Excluídos do mercado formal de trabalho, brasileiros
pobres abrem negócios para colocar comida na mesa. É mais difícil do
que parece
Flávio da Silva queria emprego mas não conseguia. Depois da última
demissão, só encontrou portas fechadas. A mulher, Marlene, sonhava com
a casa própria, mas o salário de costureira garantia apenas um
quarto-e-sala no cortiço. Juntaram o dinheiro das rescisões, compraram
a primeira máquina usada e montaram uma confecção. Outro paulista,
Oiliznod Santana, foi de montador a supervisor de produção de uma
empresa de eletrônicos, mas a fábrica faliu, o próximo posto já
significou uma queda de salário e prestígio e, na busca de uma vaga,
descobriu que sua renda não cessaria de cair.
Quando avisou a esposa, Rosana, que abriria o próprio negócio porque não
andaria para trás na vida, ela chorou. Haviam sido criados para
prosperar como empregados, com salários e benefícios no fim do mês.
Foram pegos pela crise, que comeu um naco do mercado de trabalho do país.
O mesmo se passava com a pernambucana Patrícia Machado, que não só
perdia o serviço como teve a dignidade comprometida por cheques sem
fundo passados pelo ex-patrão. Sacou as economias guardadas para pagar
a faculdade, limpou o nome e iniciou uma fábrica de temperos vendendo
pacotes de alho pelas ruas de São Lourenço da Mata num carrinho de mão.
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O Brasil é o campeão mundial em empreendedorismo por necessidade: 55%
dos novos empreendedores abriram negócios por dificuldade de encontrar
emprego. O 2º lugar é ocupado pela Argentina
e o 3º pela China. O país com menor taxa de
empreendedorismo por necessidade é a França
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É assim, sem glamour
nem fogos de artifício, que se constrói o empreendedorismo do país.
Relatório da Global Entrepreneuership Monitor (GEM), coordenado no
Brasil pelo Instituto Brasileiro da Qualidade e Produtividade no Paraná
(IBQP), em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e
Pequenas Empresas (Sebrae), instalou o Brasil, entre 37 países, em sétimo
lugar em iniciativa empreendedora. Em 2001 estava em quinto. Em 2000, em
primeiro. Hoje, o país ocupa o pódio por exibir a maior taxa de
abertura de negócios por necessidade: 55% dos novos empreendedores
escolheram ser patrões não por vocação, mas por dificuldade de
encontrar trabalho. 'O empreendedorismo brasileiro é o da desesperança,
movido pelo descrédito no emprego', afirma o economista Márcio
Pochmann, secretário do Trabalho de São Paulo. 'Mais que superação
da pobreza, é estratégia de sobrevivência.'
Os novos desbravadores
da iniciativa privada são brasileiros empenhados não em ficar ricos,
mas em manter a cabeça na superfície. Eles comandam, segundo pesquisa
do BNDES, 16 milhões de micronegócios. Quase 80% deles são informais,
por não conseguirem produzir lucro suficiente para arcar com o pacote
tributário. O que ganham mal dá para sustentar a família, manter a
empresa em pé e pagar os funcionários. 'Os efeitos sociais dos
pequenos negócios muitas vezes são lamentáveis. Não recolhem
tributos, não se enquadram na legislação trabalhista nem sanitária e
geram emprego de baixa qualidade', aponta o economista João Batista
Pamplona, autor do livro Erguendo-se pelos Próprios Cabelos -
Auto-Emprego e Reestruturação Produtiva no Brasil. 'Nesses casos,
a terceirização vira precarização e as empresas para quem prestam
serviço lavam as mãos.'
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Na cadeia produtiva, a realidade mostra que cabe aos pequenos o quinhão
mais minguado. Enquanto a empresa no topo tem os certificados ambientais
e sociais exigidos pelo terceiro milênio, a base está décadas atrás
na legislação, construindo um complexo mundo da produção, parte dele
invisível. As grandes empresas economizam empregos e salários sem
manchar a fachada e os expulsos do mercado de trabalho fornecem matéria-prima
produzida com mão-de-obra barata e desassistida. Até o terceiro ano de
atividade, metade dos micronegócios e um terço dos pequenos e médios
fracassam. E mais uma vez os empreendedores vão às ruas buscar
caminhos para garantir três refeições por dia e futuro.
Flávio, de 45 anos, e
Marlene, de 43, conseguiram chegar ao quinto ano da confecção que
montaram com o dinheiro da demissão. Na parede da pequena sala nos
fundos da casa alugada no bairro do Ipiranga, em São Paulo, o lema que
embala o sonho de um dia desembarcar numa vida confortável: 'Saúde,
coragem, perseverança'. Ele, a mulher e três costureiras trabalham 14
horas por dia sem ver a luz do sol e sem dia de descanso, montando peças
que já recebem cortadas para outras três confecções de grife.
Pela mais bem paga, uma blusa elaborada, recebem R$ 4. É vendida a R$
80 nos shoppings. Entregam 6 mil unidades de modelos variados por mês.
Chegam a ganhar R$ 3 mil mensais. A empresa ainda não foi registrada,
as funcionárias não têm carteira assinada e recebem entre R$ 250, a
menos qualificada, e R$ 600, a mais bem preparada.
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Os paulistas Oiliznod e Rosana Santana, de 39 e 38 anos, abriram há
mais de um ano uma fábrica de chicotes (cabos) eletrônicos. Oiliznod
tinha galgado todos os postos na empresa em que trabalhava quando a indústria
faliu. O próximo emprego já não deu certo. Na busca de outro,
descobriu que teria serviço, mas com salário menor e longe de casa.
Decidiu abrir um negócio no mesmo ramo. Possuía as ferramentas necessárias:
capital (R$ 5 mil), conhecimento da área, relações no mercado e uma
agenda de clientes potenciais. Os jovens empregados foram recrutados na
vizinhança. 'Eu seria mais um desempregado, mas reagi. Além de
resolver meu problema, tirei oito pessoas da rua. O governo deveria me
pagar.'
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