Regresso à cidadania

Começam a deixar os manicômios os doentes beneficiados
por projeto que prevê a liberação dos enfermos aptos
a voltar a viver na sociedade


Celina Côrtes

Maria Soares Lacerda, 62 anos, é conhecida no Instituto Psiquiátrico Nise da Silveira, no Engenho de Dentro, Rio de Janeiro, como Gatinha. Estranho apelido. Maria tem excesso de peso, faltam-lhe vários dentes e a tintura avermelhada do cabelo curto deixa aparecer uma infinidade de fios brancos. Sua primeira internação foi aos 22 anos. Aos 37, chegou à Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá. Em 1983, ela foi internada no Hospital Psiquiátrico Pedro II, que no ano passado passou a se chamar Nise da Silveira. Nesses 20 anos dentro desse hospital, não havia sequer diagnóstico para seu problema mental. Há muito tempo Maria deixou de ter crises – ela ficava extremamente agressiva –, mas, mesmo assim, vivia confinada à rotina sombria do manicômio. Na segunda-feira 2 de junho, sua expressão triste se transformou em um largo sorriso, quando se mudou, de malas, sacos e ventilador, para a casa de sua irmã, Doralice Lima, 60 anos, em Austin, na Baixada Fluminense. “Gosto daqui, mas tenho que ficar com a família”, justificou Gatinha antes de partir.

Maria está entre os cinco primeiros pacientes do Rio que receberam a bolsa de incentivo à não-hospitalização, de dois salários mínimos (R$ 480), criada pela Lei Municipal 3.400, de 2002. É um passaporte para a liberdade a doentes internados que apresentam condições de viver na sociedade. O dinheiro vai para o paciente ou para sua família. Ele pode ser abrigado pelos parentes, como Gatinha, ou morar sozinho. A legislação carioca foi baseada no projeto que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou há duas semanas, após 12 anos de discussão. O texto, enviado para o Congresso, contém as diretrizes do Programa Federal de Saúde Mental. “Nossa expectativa é de que sua aprovação saia em três meses”, festeja Pedro Delgado, coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde. Ele estima que dois mil doentes trocarão os hospitais psiquiátricos pelas bolsas ainda este ano, e outros 15 mil até 2007.

O projeto não prevê o fechamento dos manicômios, mas das vagas, trocadas pelas bolsas e não mais reabertas. Hoje existem 55 mil leitos em 244 hospitais psiquiátricos no Brasil. No projeto federal, a bolsa é de um salário mínimo (R$ 240). Além de humanizar a vida dos doentes, a iniciativa representa uma economia: a internação custa em média R$ 800 por mês aos cofres públicos. Na prática, a estratégia não significa jogar os doentes na rua, mas manter o tratamento em centros especializados e acompanhamento dos pacientes em suas próprias casas. Esta tendência começou na década de 60, a partir das idéias do psiquiatra italiano Franco Basaglia, segundo as quais deve-se dar cidadania aos doentes mentais, o que significa direito ao lazer, ao trabalho e à moradia.

Maria, a Gatinha, é uma das primeiras brasileiras a se beneficiarem dessa tendência. Sua saída do hospital só foi possível porque, além de não ter mais crises há vários anos, ela conta com o apoio da família. Sua irmã e sobrinhos já tinham contato com ela, mas as relações se estreitaram há dois anos – Maria começou a passar férias com os familiares e a visitá-los a cada 15 dias. “A família não acreditava que ela pudesse viver longe do manicômio. Mas, com a convivência, sentiram segurança. Só puderam recebê-la depois que a bolsa foi liberada, porque são muito pobres”, conta a psicóloga Monica Ramos. O vínculo familiar de Maria e sua capacidade de se readaptar à vida além-muros foram decisivos para sua escolha, entre 150 pacientes que ainda vagam pelo hospital. “Não é uma escala de habilidades, mas de possibilidades. Muitos não podem se administrar sozinhos”, avalia a assistente social Clema Santos, responsável pela seleção dos candidatos à “liberdade”.

 

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