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Estudos redefinem a visão da Via Láctea
SALVADOR NOGUEIRA
da Folha de S.Paulo
Dois grupos de astrônomos passarão o Natal em plena "guerra das
galáxias". As equipes na França e nos EUA --esta última com a
participação de um brasileiro-- competem para desvendar o que a Via Láctea
tem aprontado com suas irmãs menores e mais próximas nos últimos bilhões de
anos. A solução desse mistério pode mudar a compreensão do papel da galáxia
da Terra no Universo.
No momento, os cientistas correm atrás das chamadas galáxias-satélite da Via
Láctea, aglomerados menores de estrelas que se localizam na periferia da
galáxia maior e estão sendo deglutidos pelas violentas forças gravitacionais
exercidas por ela. Igualmente movimentadas estão as disputas internas à
comunidade científica para ver quem sai vitorioso, a cada nova descoberta. Por
exemplo: como se chama a segunda galáxia-satélite descoberta na periferia da
Via Láctea, no ano passado?
Se você perguntar isso ao grupo de Rodrigo Ibata, do Observatório de
Estrasburgo, França, ele dirá: "Canis Major, é claro". Foi esse o
nome dado por ele à galáxia, depois de identificar o que supostamente seria
sua região central, na constelação de Cão Maior. Ele anunciou sua
"descoberta" em novembro, mas os resultados não alegraram um outro
grupo, liderado por Steven Majewski, da Universidade da Virgínia, EUA.
A equipe americana, que tem entre seus membros o brasileiro Hélio Jaques
Rocha-Pinto, já havia publicado diversos trabalhos a respeito da mesma
galáxia, originalmente chamada de "Monoceros", antes mesmo que Ibata
e seus colegas determinassem o suposto centro do aglomerado que está sendo
canibalizado pela Via Láctea. Eles consideram que seu trabalho foi
intencionalmente ignorado pelo grupo da França, para que Ibata pudesse anunciar
com primazia a identificação do centro da galáxia.
Muitos nomes
Hoje, cada grupo batalha por um nome diferente. Há quem defenda a adoção de
Monoceros, por ter sido o nome pioneiro. Outros argumentam que Canis Major é o
mais lógico. Não há consenso, mas em breve pelo menos uma das sugestões deve
cair.
O grupo de Majewski diz ter evidências de que o centro galáctico afinal não
se encontra em Cão Maior. "Eu tracei boa parte dos destroços
gravitacionais dessa galáxia no hemisfério Norte galáctico e agora busco seu
centro, que, estou convencido, não está em Canis Major, mas em algum ponto
entre as constelações da Popa, da Quilha e da Vela", diz Rocha-Pinto.
"Não há motivo para chamá-la assim."
O pesquisador brasileiro defende a adoção do nome Monoceros, estabelecido pela
astrônoma americana Heidi Newberg, a primeira a identificar destroços da
galáxia, na constelação do Unicórnio, em 2002.
Apesar das polêmicas, os trabalhos dos grupos de Majewski, Ibata e outros
pesquisadores terminam confluindo para uma verdadeira revolução no modo como
os astrônomos encaram a Via Láctea. "O que tem acontecido nos últimos
dois a três anos é que a concepção que tínhamos sobre a Via Láctea está
mudando rapidamente", diz Rocha-Pinto.
Além da disputada galáxia-satélite, há pelo menos mais uma, chamada
Sagittarius (por ter seu centro na constelação de Sagitário), encontrada em
1994 por Ibata, um pesquisador britânico que viveu muito tempo na Bolívia e
tem parentes no Brasil.
Ambas as galáxias estão sendo consumidas pela Via Láctea, destroçadas pela
gravidade. Por seu estado degenerado e pela proximidade com o plano das estrelas
da galáxia maior, é extremamente difícil identificá-las.
Com todas as barreiras, os cientistas continuam na luta. Anteontem, Rocha-Pinto
estava trabalhando no observatório de Kitty Peak, Arizona (EUA), na tentativa
de confirmar a existência de um terceiro conjunto de estrelas, totalmente
desconhecido, localizado na periferia da Via Láctea --os dados ainda são
controversos a esse respeito. Apesar disso, está cada vez mais difícil ver a
galáxia à qual a Terra pertence como uma região comum do cosmos.
Fuga de dogmas
"Os astrônomos sempre tentam partir da idéia de que vivemos em sistemas
relativamente comuns, nos quais não há nada especial --uma forma de evitar o
velho antropocentrismo dos sistemas cosmológicos da Antiguidade, que viam o
homem, a Terra e depois o Sol como centro do Universo", diz Rocha-Pinto.
"Parece que nossa galáxia não é um local comum, uma espiral qualquer no
Universo. A profusão de galáxias-satélite --as duas nuvens de Magalhães,
Sagittarius e Monoceros-Canis Major--, das quais duas estão em processo de
canibalização, mostra que não vivemos em uma vizinhança galáctica muito
tranquila."
O potencial de estudos como esses parece estar no rumo firme de aprofundar o
entendimento da galáxia como um todo. Isso teria implicações para entender,
por exemplo, quão comuns são estrelas como o Sol, ou qual é o ritmo de
formação estelar nas várias regiões galácticas.
Renascença galáctica
"Creio estarmos vivendo uma época de florescimento da astronomia
galáctica", diz Rocha-Pinto. "Durante anos, o termo "astronomia
galáctica" foi deixado tão de lado que nem mesmo era considerado uma
subárea do conhecimento astronômico, em muitos formulários que preenchemos
para requisitar verba ou participar de congressos."
Agora, com o surgimento de grandes projetos de levantamento estelar, que
permitem a identificação das galáxias-satélite e sua distribuição em torno
da Via Láctea, essa perspectiva deve mudar. O que sem dúvida só tende a
acirrar outras disputas como a de Ibata e Majewski --para o avanço da ciência,
naturalmente.
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