Até onde TV e PC se
misturam?
Máquinas de gastar tempo e poupar tempo.
No último sábado, durante a primeira parte do workshop promovido pelo
WebInsider e pela faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, discuti com os
participantes as dificuldades da fusão entre a televisão e o computador
pessoal.
Os marqueteiros das empresas de tecnologia e de conteúdo estão apostando alto
no surgimento de uma TV interativa comercial em larga escala. Projetam um futuro
onde cada televisor, cada sala de estar poderá ser uma estação completa de
serviços. A TV deixará de ser um receptor passivo de uma programação
uniforme, pré-produzida na origem. Mais: todo telespectador se tornará um
consumidor muito ativo, pressionando botões para comprar, comprar, comprar.
É um assunto muito sério. Envolve "very serious money", coisa para lá
de US$ 10 bilhões, talvez 20 ou 30. Os prazos de implementação variam entre 5
e 12 anos.
Mas será que o telespectador (passivo) vai mesmo interromper o capítulo de uma
novela, filme ou seriado para usar o controle remoto e comprar algum objeto que
aparece em cena?
Haverá interesse por uma total desconstrução do hábito de ver TV? Quer
dizer, as pessoas ficarão realmente interessadas em programar sua TV digital
personalizada, uma paciente colagem pessoal de programas, anúncios, vinhetas,
informes, alertas, etc, etc? Talvez. Talvez não.
As naturezas da TV e do PC são opostas no sentido de que a TV é um aparelho
para as pessoas gastarem o tempo, enquanto o PC é uma máquina de poupar
o tempo. Essa diferença não é banal, é o cerne da relação humana com
os dois aparelhos. As pessoas perdem tempo na frente da TV, como lazer. A
atitude na frente do computador é ativa. Tudo o que fazemos na frente do
computador requer envolvimento.
Por outro lado, a TV e o PC são gêmeos siameses, à medida que são os "eletronicodomésticos"
mais importantes em uma residência. Todo o planejamento marqueteiro relacionado
com a TV interativa deve vir da percepção de que tanto a TV como o PC
concentram fortemente nossa atenção (em termos de ibope, pageviews) e que a
digitalização da TV permitirá uma linguagem comum entre os dois. Unidos por
um fluxo de zeros e uns, a TV e o PC terão vasos comunicantes.
Mas se tornarão um só? A semelhança entre o PC e a TV será tecnológica,
pois ambos funcionarão com conteúdos digitalizados. Mas a diferença é
cultural, é o fator humano.
Recordei durante o seminário uma série de iniciativas de TV interativas,
testadas nos Estados Unidos em meados da década de 90. Das seis experiências
relatadas em uma reportagem de 1995, nenhuma sobreviveu até os dias de hoje.
Mesmo quando os parceiros eram a Time Warner (pré-AOL) e a (ex-)gigante das
telecomunicações GTE. A maioria dos testes fracassou depois de alguns meses. Só
dois duraram mais de um ano, por insistência dos marqueteiros. Os experimentos
foram todos realizados em subúrbios de classe média alta dos EUA, com alto nível
de instrução e de renda familiar.
Mesmo na época, os usuários entrevistados não eram convincentes ao demonstrar
entusiasmo por algo que destruía a experiência da televisão. Um dos
serviços transformava a TV num supermercado virtual, onde o consumidor tinha a
visão de um carrinho de compras deslocando-se pelo corredor do supermercado, de
modo muito similar aos jogos de tiro em primeira pessoa, como Counter-Strike.
Uma experiência gélida e desumana substituindo a atividade realmente
interativa de fazer compras no supermercado, de apalpar as mercadorias, sentir
seu cheiro e textura.
A extinção desses modelos de TV interativa faz pensar que TV e PC são como água
e óleo, não se misturam. Ao chacoalhar a mistura, pode-se ter a impressão de
que a emulsão representa uma fusão entre os meios. Mas basta deixar em
repouso, e o óleo separa-se da água.
Fica claro que a digitalização da TV criará uma via antes inexistente entre
os canais convencionais de TV e a internet. Mas suspeito que ninguém vai querer
navegar pela internet usando a televisão, pelo menos não nos próximos vinte
anos. Pessoas que hoje são bebês poderão um dia usar híbridos bem resolvidos
de PC e TV, caso venham a existir.
A praga que cerca esse processo é uma horda de marqueteiros, todos com seus
vistosos MBAs. A humanidade tem seu próprio ritmo na absorção de novas
tecnologias. No caso específico das tecnologias de mídia, o impacto é muito
forte e traumático, como alertava Marshall McLuhan. Não é preciso um
departamento de marketing para forçar ainda mais a barra com a ganância paquidérmica
das corporações.
Em um seminário recente sobre televisão na Universidade de São Paulo, José
Bonifácio de Oliveira Sobrinho disse que o grande gancho para a TV digital será
o surgimento de uma nova geração de criadores de conteúdo, talentos
capazes de criar conteúdos inovadores e atraentes para as novas condições do
meio. Para Boni, a TV digital requer capacidades transdisciplinares,
habilidades que não são aprendidas em escolas. A revolução digital é inata,
e não se resolverá com monstrengos midiáticos criados por marqueteiros, que só
são capazes de usar estatísticas distorcidas e "business plans"
feitos para o CEO ver. [Webinsider]
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