Ecstasy
- A droga da classe média
O mito da “droga inofensiva” e a distância
dos morros transformam a pílula na nova porta de entrada dos
jovens para os entorpecentes
Há algo de novo nas noitadas das grandes cidades. O ecstasy, a
'pílula do amor', a 'bala' das festas de música eletrônica,
deixou definitivamente de ser uma droga do mundinho clubber,
usada por gente de cabelo verde e roupas escalafobéticas, para
tornar-se aditivo comum entre adolescentes de classe média.
Transformou-se na nova porta de entrada dos iniciantes no mundo
das drogas. Com o falso marketing de substância inofensiva, que
provoca euforia sem causar dependência, o ecstasy é
experimentado pelos jovens em raves e em casas de amigos. O
crescimento do consumo pode ser comprovado pelas apreensões
feitas pela Polícia Federal nos últimos meses. De janeiro a
abril deste ano foram mais de 54 mil comprimidos - três vezes
mais que todo o ano passado. A garotada da Zona Sul do Rio de
Janeiro vê a pílula como alternativa 'segura' à cocaína e à
maconha. 'Para comprar essas drogas, o consumidor tem de subir o
morro. Com o aumento da violência, porém, a classe média quer
distância desses lugares. Por isso compra ecstasy, que é
vendido pelo colega de faculdade e pelo sujeito que eles
encontram na danceteria', diz o delegado de entorpecentes da PF
do Rio, Victor Carvalho dos Santos.
O estudante G.,
de 19 anos, morador do bairro de São Conrado, é um exemplo da
nova tendência. 'Certa vez fui comprar maconha na Rocinha e
começou um tiroteio. Acertaram um cara do meu lado. Decidi
passar para o ecstasy, que é mais elitizado', diz. Há pouco
mais de um ano ele experimentou o primeiro comprimido. Depois de
várias sessões, tornou-se dependente, teve crises de depressão
e chegou a bater na própria mãe. Só conseguiu voltar à vida
normal após ser internado em uma clínica de recuperação, em
novembro. A ironia é que G. e cinco de seus amigos haviam
firmado um pacto - nenhum deles se envolveria com cocaína, para
evitar a destruição provocada pela droga. Elegeram o ecstasy
por julgá-lo inofensivo. 'Quem cheirasse cocaína era
vacilão', lembra o rapaz, que agora freqüenta as reuniões dos
Narcóticos Anônimos. Até 2001 era raro encontrar nas clínicas
de tratamento de viciados os consumidores da 'bala', 'E', 'I' ou
'pílula do amor', como o ecstasy também é chamado. 'Desde o
ano passado, eles correspondem a 25% das internações', diz o
psiquiatra Jorge Jaber, dono de uma das maiores clínicas do
Rio. Segundo ele, a faixa de idade dos consumidores é mais
baixa que a dos viciados em outras substâncias - de 16 a 20
anos.
Vendida em pílulas
de diversas cores, desenhos e tamanhos, a 'bala' pode passar
facilmente por um inofensivo remédio para dor de cabeça. Não
tem o cheiro forte da maconha nem exige um ritual para ser
consumida, como a cocaína. Por isso é mais discreta e fácil
de esconder da polícia. A origem da droga, vendida por gente de
classe média - e não por traficantes do morro -, sugere que
ela não alimenta o crime organizado. O que é falso, porque em
lugares como Londres e Ibiza seu comércio já é controlado
pela máfia russa. Nas festas do Rio e de São Paulo, o consumo
serviu também para ressuscitar o alucinógeno da geração dos
anos 50, o lança-perfume. Ele é usado para 'aquecer os
motores', porque o ecstasy leva cerca de 30 minutos para fazer
efeito. Desde janeiro a Polícia Federal apreendeu mais de 18
mil frascos da droga - volume seis vezes maior que o registrado
em todo o ano de 2000.
Parte do sucesso do ecstasy é baseada na tese de que a droga
seria inofensiva, porque não gera dependência química.
Bobagem. 'Ela causa dependência psíquica, o que muitas vezes
pode ser mais difícil de tratar', explica a psiquiatra Vania
Novelli Domingues, especialista em tratamento de viciados. O
MDMA, princípio componente ativo da droga, provoca forte
descarga de serotonina, o neurotransmissor responsável pela
sensação de prazer e bem-estar. Após quatro a seis horas, o nível
de serotonina baixa para próximo de zero, o que nas primeiras
vezes provoca uma espécie de 'baixo-astral', e a longo prazo
pode evoluir para um quadro clínico de depressão. Isso faz com
que o usuário volte a recorrer à droga freqüentemente para
evitar o desconforto. 'Ele quer sempre mais', diz a psiquiatra
Maria Thereza Aquino, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção
ao Uso de Drogas do Estado do Rio de Janeiro (Nepad). Difícil
é explicar isso aos dependentes. O psiquiatra Arthur Guerra, do
Hospital das Clínicas de São Paulo, diz que há uma diferença
de atitude entre os usuários que trouxeram as primeiras pílulas
para o Brasil e os internados hoje. 'Antes o sujeito chegava
cheio de dúvidas, preocupado, queria informações. Agora eles
agem com desprezo e dizem que não dependem da droga', diz.
Criado em
laboratório em 1914, o ecstasy é parente das anfetaminas,
drogas presentes em vários remédios para emagrecer e usadas
pelos caminhoneiros para permanecer acordados durante as
madrugadas. Nos anos 60, médicos imaginaram que ele poderia ser
usado para o tratamento de depressão, mas hoje o consenso dos
especialistas é justamente o oposto. Uma pesquisa de dois anos
feita por psicólogos da London Metropolitan University,
divulgada em março, revelou que pessoas que usam o alucinógeno,
mesmo que eventualmente, têm quatro vezes mais chances de ter
depressão que aquelas que consomem outros tipos de droga.
Há controvérsias sobre a extensão do estrago que o ecstasy
produz no cérebro a longo prazo. Alguns cientistas acham que
ele pode deflagrar até quadros de esquizofrenia. Outros dizem
que as pesquisas não são conclusivas. Os riscos imediatos, porém,
são bem conhecidos. A droga afeta o mecanismo de controle da
temperatura corporal, superaquecendo o organismo. O calor em
excesso destrói enzimas do sangue e pode provocar convulsões e
paradas cardíacas. 'Os consumidores ficam facilmente com 39 a
40 graus de temperatura, como se estivessem com febre', diz
Maria Thereza Aquino, do Nepad. 'Começam a dançar e pular,
aquecendo o corpo ainda mais.' Daí vem a maior parte das mortes
entre os usuários. No Reino Unido, onde as raves são
verdadeiras instituições, 202 pessoas morreram nos últimos
seis anos pelo consumo da 'bala'. A situação é tão crítica
que a prefeitura de Londres baixou uma portaria determinando que
as casas noturnas distribuam água gratuitamente aos freqüentadores,
além de manter um atendimento médico de plantão.
No Brasil, há
o registro oficial de um único óbito, em 2002: uma estudante
de psicologia de 23 anos morreu de edema pulmonar agudo horas
depois de tomar a droga numa festa. O edema que matou a jovem
foi provocado por excesso de ingestão de água, combinado à
baixa eliminação de líquidos, efeito comum em consumidores da
substância - ao contrário da cerveja, o ecstasy reduz a
vontade de ir ao banheiro.
pílula existe
há quase tanto tempo quanto a cocaína e a maconha, mas em todo
o mundo só foi consumida em larga escala nos últimos anos. Por
quê? O psicólogo Murilo Battisti, que tratou do assunto numa
tese de mestrado, atribui o fenômeno a uma série de mudanças
culturais. Na década de 60 as drogas populares eram maconha e
LSD, que levam a experiências contemplativas, que combinavam
com a postura hippie de afastamento da sociedade de consumo. A
cocaína, que produz sensação de poder, casava com os yuppies
dos anos 80. O ecstasy, que promete apenas prazer, combina com a
era dos singles, a cultura fashion e as raves. Por cortar o
apetite, está em consonância com o apelo por magreza.
Muitos fatores
conspiram para a difusão da droga, mas ela está longe de ser
uma prioridade para a polícia. Primeiro, porque seu comércio,
ao menos até o momento, não está ligado aos traficantes que dão
tiros de AR-15 do alto dos morros. Segundo, porque os
comerciantes da pílula vêm de um ambiente com o qual a polícia
não tem intimidade. São universitários, de classe média,
sustentados pelos pais e viajam para o Exterior para comprar
ecstasy e revendê-lo. Fazem comércio de varejo, em pequenas
quantidades, em festas e academias. 'Já tentamos nos infiltrar
nesse meio, mas esbarramos no problema da idade e das fontes. Os
agentes não têm o perfil de quem vai às raves', diz o
delegado Carvalho dos Santos, da PF.
No
início do mês, foi preso em São Paulo o DJ Pam Lê, de 25
anos, tido como um dos principais fornecedores de drogas sintéticas
da cidade. Ele tinha em seu poder 1 quilo de maconha, e com uma
de suas parceiras havia 1 quilo de cocaína. Ele pretendia
viajar para a Espanha, onde trocaria o material - vendido muito
mais caro no mercado europeu - por ecstasy, que vale mais aqui
do que lá. É praticamente um replay da história do israelense
Dror Shimon, de 36 anos, preso no Aeroporto do Rio em março com
um travesseiro cheio de compridos. Ele havia acabado de trazer
ecstasy da Europa, para onde levaria cocaína obtida por
escambo. As duas prisões sugerem que o perfil dos traficantes
da 'bala' pode estar mudando, a caminho de uma profissionalização.
A cocaína começou assim.
Renata Leal, João Luiz Vieira e Edna Dantas
GENTE COMO A
GENTE
Segundo a Polícia Federal, o perfil do traficante de
ecstasy é de jovem de classe média
Jovem de classe média
Tem entre 20 e 27 anos
Trafica para poder consumir as pílulas
Em geral, cursa universidade
Não trabalha. É sustentado pela família, que não sabe do tráfico
Figura fácil em boates e festas com música eletrônica, onde
estão os consumidores
Viaja muito. Compra as pílulas em Amsterdã, Madri e Londres e
volta ao Brasil com a droga na mala
ELIANE
SANTOS E RICARDO MENDONÇA
A
ESCALADA DA DROGA
Número de comprimidos apreendidos, ano
a ano
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2000 |
16.796 |
2001 |
1.909 |
2002 |
15.804 |
2003 |
54.608* |
Fonte: Polícia
Federal
*de janeiro a abril
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