Boas
e urgente maneiras
Ao investir em dicas de educação
e sociabilidade,
a etiqueta volta a despertar interesse e torna-se
ferramenta indispensável nas relações de trabalho
Camilo
Vannuchi
Boas maneiras, refinamento, educação, cordialidade.
Palavras cobertas de poeira e fadadas a cair no esquecimento?
Nada disso. Pode parecer blablablá de gente careta, mas as
normas de etiqueta voltaram com força total. Antes de mexer na
organização dos copos e mudar todos os talheres de lugar, no
entanto, é melhor conter os gestos e respirar fundo. Os manuais
de hoje estão mais preocupados com dicas de sociabilidade do
que com as velhas regras de como arrumar a mesa e cruzar as
pernas. E isso tem uma explicação: como todos os hábitos
culturais, a noção de certo e errado nas relações sociais
muda com o tempo. O que era proibido passa a ser aceito, o que
era falta de decoro torna-se in, fashion, hype – só para
reproduzir algumas das expressões que, como a etiqueta, são
aos poucos incorporadas. Se, após cinco meses de governo Lula,
a quebra de protocolo deixou há muito de ser notícia, como
exigir dos brasileiros um comportamento cheio de pompa e
circunstância?
Respeitar atitudes pessoais e entender que cada um tem seu
jeito de agir e pensar foram os primeiros desafios da etiqueta
ao transpor o limiar do século. Lição de casa concluída, as
novas dicas refletem o cheiro e o sabor da atualidade. Poucos se
incomodariam, hoje, se as facas estivessem à esquerda do prato
e os garfos à direita. Na era da refeição por quilo e do
fast-food, fazer escândalo em um restaurante por causa da ordem
dos copos parece cena de filme de Woody Allen. “Não me
interessa onde cada pessoa deve ficar no altar nem qual a melhor
distribuição à mesa. Até porque eu não sei o jeito certo.
Esse tipo de preocupação já era”, lembra a carioca Danuza
Leão, autora de Na sala com Danuza (Editora Siciliano),
lançado em 1992 e considerado ainda hoje a virada de mesa das
regras de fino trato. “Antes de escrever meu livro, li todos
os manuais disponíveis e confesso que nem o pessoal do Casseta
& Planeta me fez rir tanto”, alfineta. A consultora Cláudia
Matarazzo, de São Paulo, faz uma avaliação semelhante. “A
etiqueta sempre foi um código de relacionamento. Mas era muito
rigoroso”, acredita. Cláudia acaba de lançar seu oitavo
livro dedicado ao tema, Negócios, negócios, etiqueta faz
parte (Editora Melhoramentos), no qual combina regras
tradicionais com dicas de convivência. “A etiqueta deve ser
antes de tudo uma forma respeitosa de viver em sociedade. Por
mais que algumas normas de boas maneiras mudem, o respeito ao
outro continua inquestionável”, diz ela.
Desenvolvida na França durante o reinado de Luís XIV, a
etiqueta desempenhou papel decisivo como fator de distanciamento
entre a nobreza e o resto da população. Durante o século
XVII, a monarquia sentiu a necessidade de investir em certos
padrões palacianos para firmar posição e mostrar ao mundo que
bons modos a distanciava da burguesia emergente. Na segunda
metade do século XX, no entanto, as regras estipuladas no
Antigo Regime foram colocadas abaixo. Durante a revolução
cultural dos anos 60 e 70, viraram símbolo de conservadorismo e
vítima de contestação. Quem imaginaria, naquela época, que
30 anos mais tarde a etiqueta voltaria à cena como ferramenta
indispensável? “Por causa da globalização, há novamente um
movimento de resgate de certos valores e de certas atitudes
universais. A qualquer momento um profissional pode ser
convidado a fazer uma viagem de negócios e não tem idéia de
como se portar”, justifica Cláudia Matarazzo.
As dúvidas são tantas que os novos lançamentos têm
conquistado
não apenas leitoras – como era tradição –, mas uma massa
de homens engravatados ávidos por descobrir o caminho das
pedras para uma promoção na empresa ou para conquistar uma
garota. “Hoje, meu
público é quase exclusivamente masculino. A maioria das
palestras que faço é promovida por departamentos de recursos
humanos de empresas. Antes, eram os clubes de senhoras que mais
me chamavam”, compara Cláudia. Não é à toa que seu novo
livro, dedicado à etiqueta no trabalho, é o mais grosso de sua
carreira. Em 216 páginas, ela responde às principais dúvidas
levantadas pelo público de suas palestras, desde
a melhor roupa para usar no escritório até dicas de como se
portar
em festas de fim de ano da firma.
Para a consultora de etiqueta e antropóloga Lígia Marques,
que ministra cursos em São Paulo, as empresas perceberam que
habilidade técnica e conhecimento quase não mudam de um
funcionário para outro. “O diferencial na hora de contratar
ou promover passou a ser a postura. E bastam quatro segundos
para que se forme a primeira impressão de alguém, seja ela
positiva, seja negativa. Gente que não conversa, não
cumprimenta e vive de mau humor está com os dias contados”,
afirma. Segundo Lígia, quem mais percebe a necessidade de
adquirir boas maneiras são os jovens na faixa dos 30 anos.
“Seus pais fizeram a revolução de comportamento nos anos 60
e jogaram para o alto todas as regras. Foram criados sem uma
educação formal e não aprenderam como se portar à mesa, por
exemplo. Por isso, a maioria desses jovens adultos treme diante
de um convite para um jantar na casa do chefe”, explica. Também
o feminismo ajudou na cruzada contra os manuais de etiqueta. Se
acender o cigarro para um homem deixou de ser um crime, dicas de
como cruzar as pernas e de como arrumar a mesa para o marido
tornaram-se as coisas mais descabidas do mundo. “Intimidados,
os homens deixaram até de abrir a porta para as mulheres com
medo da reação delas. Hoje, eles precisam aprender que abrir a
porta não é necessário, mas, se o fizerem, elas vão adorar.
E as mulheres devem agradecer, jamais fazer discurso”, afirma
Lígia.
Com tanta badalação, até a academia se rendeu à etiqueta.
Este mês, no departamento de antropologia da Universidade de São
Paulo, a antropóloga Daniela Scridelli Pereira apresenta sua
dissertação de mestrado sobre boas maneiras. Entretida com o
assunto há quase três anos, Daniela se surpreendeu com a
penetração da etiqueta nas camadas menos favorecidas da população
ao mesmo tempo que seus colegas de faculdade se alvoroçavam a
cada nova dica. “Alguns amigos compravam manuais para saber o
que deveriam vestir para trabalhar. Achava estranho uma pessoa
abrir mão de seu estilo para se vestir de acordo com padrões
nada pessoais, principalmente em uma faculdade que preza a
diversidade”, diz. Não demorou para que ela descobrisse a
principal função da etiqueta: o marketing pessoal. “A
etiqueta é um instrumento político capaz de camuflar a origem
popular de uma pessoa. Por isso, as classes C e D seguem à
risca os conselhos dados por consultores em programas de tevê.
Saber como se portar, como se comunicar e como se vestir são
armas poderosas para quem quer se dar bem no mercado ou se
sentir incluída em determinado grupo”, resume.
Isso justifica o quadro apresentado por Fábio Arruda no
programa Note e anote, da Rede Record. Prestes a lançar
seu primeiro livro, Sempre, às vezes e nunca (Ed. AXN),
Arruda entende os manuais de etiqueta como verdadeiro exemplo de
auto-ajuda. “Muitos confundem auto-ajuda com superstição e
espiritualismo. A etiqueta melhora a vida de todo mundo e
independe da estrela polar, dos chacras ou de qualquer outro
elemento externo”, considera. Toda semana, Arruda usa a
televisão para democratizar dicas de organização e,
principalmente, de apresentação pessoal. “É errado pensar a
etiqueta como frescura de família rica de novela. Ela é seu
cartão de visitas. Ninguém coloca o dedo no nariz nem palita
os dentes na frente dos outros. Não há o que discutir. Vale
para ricos e pobres, homens e mulheres”, diz. Em seu livro,
Arruda é categórico ao permitir e proibir certas roupas e
atitudes. Nem cogita aliviar a obrigatoriedade de algumas dessas
normas. “Antes de apoiar o discurso do ‘seja você mesmo’,
é bom saber que pode haver consequências devastadoras. O que
existe na etiqueta não é aleatório, não é invenção. Tudo
tem um porquê. É errado comer de boca aberta e falar de boca
cheia porque constrange quem está à mesa. Simples, não?”,
arremata. Antes de meter os pés pelas mãos, leia as dicas
sugeridas pelos entrevistados e divididas de acordo com cada
ambiente nos quadros que ilustram essas páginas. E não vá
cometer deslizes!
Istoé
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