Mudando de assunto


Encontro no excelente "Cartas ao Mundo", o livro com a correspondência de Glauber Rocha organizada pela crítica Ivana Bentes para a Companhia das Letras, uma carta do antropólogo Darcy Ribeiro dirigida ao diretor.

É uma das missivas mais notáveis do livro. Nela, o antropólogo reflete sobre João Goulart e o golpe de 64, a pedido de Glauber, que pretendia realizar um filme sobre o presidente.

Datada de 31 de maio de 1972, a carta permanece bastante útil para o Brasil atual, particularmente quando Darcy Ribeiro discorre sobre o modo como a conjuntura obriga um líder político a substituir seus ideais. Não resisto à idéia de transcrever este trecho (pág. 374):

"Quanto ao Jango, a primeira observação seria a de uma aparente dualidade entre o que ele é, pela vida que se construiu de fazendeiro-invernista bem-sucedido e rico, e seu desempenho de político reformista. Mas a simples suposição dessa dualidade traz implícita a idéia de que as personalidades são entidades inteiriças e coerentes, o que é muito duvidoso. Mais verdadeira é talvez a observação de que os homens atuam na vida social, e particularmente na arena política, muito mais de acordo com as circunstâncias --as conjunturas, como se diz-- do que com o ideário que acaso tenham. Todos nós estamos permanentemente nos representando a nós mesmos, representando para platéias indiferentes ou coniventes, que tanto nos coagem com suas expectativas que interiorizamos como se projetam em nós.

"É óbvio que há lugar para graus maiores ou menores de autenticidade nessas representações. O homem comum se constrói com as projeções externas interiorizadas, mas o faz de forma tão genuína que chega a convencer-se de que são suas todas as suas crenças. Um cínico gostaria de construir-se seletiva e racionalmente, escolhendo aqueles traços cuja exibição fosse mais vantajosa em cada situação. Mas nem mesmo o homem comum, ingênuo, escapa totalmente de si próprio, convertendo-se num reflexo mimético das experiências alheias, porque a própria singularidade de sua experiência existencial acaba por tipificá-lo. Nem escapa o cínico, que tratando de intencionalizar sua imagem aos olhos dos outros, acaba por ver-se, a si próprio, com a visão alheia, como se ele realmente fosse o que pretende parecer.

"Para que tanta confusão? O que quero dizer é tão-somente que um homem não exprime, no poder, a sua ideologia pessoal, mas a conjuntura política que o ascendeu. É claro que deve haver certa compatibilidade entre o papel representado e a personalidade que o encarna. Mas, via de regra, as personalidades são suficientemente flexíveis para se acomodarem aos papéis que ordinariamente são chamadas a viver."

Alcino Leite Neto é editor de Domingo da Folha e editor do site Trópico. Escreve para a Folha Online aos domingos

E-mail: alcino@uol.com.br

 

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