Impacto de asteróides criou condições para a vida na Terra

Gordon Osinski - New Scientist


Se você se colocar no ponto de impacto no centro da cratera de Haughton, é difícil visualizar a enormidade do que ocorreu ali cerca de 23 milhões de anos atrás. Hoje, a ilha Devon, na distante região ártica do Canadá, é um deserto polar desprovido de praticamente qualquer vida vegetal ou animal. Mas, 23 milhões de atrás, era um lugar muito diferente. Florestas verdejantes floresciam, coelhos gigantescos pulavam de um lado para outro e pequenos rinocerontes pastavam despreocupados.

Tudo isso mudou quando um cometa ou asteróide de mais de um quilômetro de diâmetro caiu sobre a floresta. O impacto escavou entre 70 bilhões e 100 bilhões de toneladas de rochas, formando uma cratera de 24 quilômetros de diâmetro. Em um piscar de olhos, toda a vida em uma área ligeiramente menor que a Escócia se extinguiu. A uma distância maior da cratera, a onda de choque da explosão, o deslocamento de ar e o calor que ela produziu exterminaram a maior parte das demais coisas vivas.

Mas não definitivamente. Uns poucos milênios depois do impacto, a cratera de Haughton estava uma vez mais pululante, cheia de vida. O calor do impacto aqueceu a água do lençol freático, criando sistemas hidrotérmicos, lares perfeitos para intrépidos organismos colonizadores, tais como as bactérias e as algas. À medida que a cratera se resfriava, um lago se formou, e sedimentos começaram a se acumular. Graças aos fósseis presentes nesses sedimentos, sabemos agora que foi uma mudança climática gradual, e não o impacto do asteróide, que fez com que a cratera de Haughton voltasse a ser o deserto polar que ainda vemos hoje.

Os geólogos vêm contando histórias semelhantes sobre diversos outros locais. As crateras de impacto continuam a merecer sua reputação como cenas de devastação, mas à medida que se resfriam, se tornam locais ideais para que a vida ressurja. E isso fez com que algumas pessoas começassem a imaginar se crateras de impacto poderiam ter fornecido o ambiente necessário a que a vida emergisse inicialmente, nos primórdios da Terra.

Os estudos da "árvore da vida" terrestre sugerem que dos três reinos biológicos -Eucaria, Bactéria e Arquéia-, o de Arquéia representa algumas das primeiras formas de vida. Igualmente importante, as arquéias são termofílicas, e esses organismos amantes do calor só crescem em temperaturas superiores à faixa dos 60 a 80 graus. De modo que a vida original da Terra provavelmente se originou e evoluiu em poças ou sistemas de água aquecidos por rochas quentes posicionadas por sob a água. Os sistemas hidrotérmicos ativos hoje em dia têm origem vulcânica, por exemplo o do Parque Nacional de Yellowstone, no Wyoming, Estados Unidos. Mas dado o fato de que as crateras de impacto são capazes igualmente de prover os dois mais importantes componentes de um sistema hidrotérmico -o calor e a água-, aparentemente os vulcões não são o único candidato possível como primeiros hospedeiros da vida.

Ainda nos anos 70, os geólogos que estudavam rochas que haviam sido derretidas nas crateras de impacto e se resfriado posteriormente compreenderam que algumas dessas rochas derretidas não eram novas. Os minerais que eles esperavam encontrar tinham sido substituídos por argila, carbonatos, zeólitas e óxido de ferro, ou seja, ferrugem. Esses materiais se formaram por precipitação, da água quente que dissolveu os metais que compunham as rochas locais originalmente. Com o passar do tempo, indícios semelhantes foram localizados em tantas crateras diferentes e distantes que Horston Newsom, da Universidade do Novo México, sugeriu que a formação de sistemas hidrotérmicos possivelmente é inevitável, nas crateras de impactos.

Mas foi apenas recentemente que descobrimos que aparência elas tinham. Em 2000, Pascal Lee, do Instituto SETI (Busca por Inteligências Extraterrestres), da Califórnia, John Spray, da Universidade de New Brunswick, e eu localizamos indícios de atividade hidrotérmica na cratera de Haughton. Em torno de toda a região da cratera, pilhas de belos cristais transparentes de selenita -formados de sulfato de cálcio hidratado- e trechos alaranjados de rochas ferruginosas, alteradas pelo efeito hidrotérmico, serviam como testamento do passado quente e úmido de Haughton. Mapeando a distribuição desses depósitos, em torno da cratera de impacto, algo que jamais havia sido realizado em estudos anteriores, nós pudemos conceber que aparência teria o sistema hidrotérmico original.

Por exemplo, Lee e eu encontramos certas estruturas incomuns em torno da borda erodida da cratera de Haughton, que acreditávamos representar respiros hidrotérmicos, pontos em que a água fervente ou vapor do lençol freático se movia através das rochas quentes e subitamente irrompia, escapando para a superfície. Ao comparar nossas descobertas com os sistemas hidrotérmicos ativos associados às áreas vulcânicas, parece provável que esses respiros concebivelmente descarregassem água e vapor na superfície em forma de fontes aquecidas. E já que a vida pulula nas fontes aquecidas do Parque Nacional de Yellowstone, não é preciso muita imaginação para sugerir que a vida poderia, igualmente, ter florescido nas fontes aquecidas de Haughton cerca de 23 milhões de anos atrás.

A principal fonte de calor para o sistema hidrotérmico da cratera de Haughton teria sido a camada de 200 a 300 metros de espessura de rocha derretida que ocupou a área central da cratera logo depois do impacto. A água do lençol freático sob esse ponto se aqueceu quase ao ponto de fervura, e subiu rocha acima, escapando por quaisquer passagens encontradas. À medida que a água se aproximava da superfície, a camada de rocha derretida passou a funcionar como uma tampa, forçando o vapor a se mover lateralmente até atingir as falhas geológicas de contato na beira da cratera, que continuam no mesmo lugar até hoje, e que são o ponto em que localizamos os respiros fossilizados. Quando a cratera se resfriou ainda mais, os sedimentos em seu piso indicam que um lago se tenha formado

A terra do Hades

Atividades hidrotérmicas associadas a impactos, como as descritas acima, foram constatadas em quase todas as crateras de impacto que foram estudadas de maneira aprofundada, cerca de 70 dentre as 170 conhecidas no planeta Terra. Se quase todos os impactos sobre um planeta portador de água resultam na formação de um sistema hidrotérmico, então a Terra, em seus primórdios, deveria estar repleta deles. A despeito da controvérsia quanto à data exata de surgimento das primeiras formas de vida, muitos geólogos datam os primeiros traços químicos de vida a cerca de 3,8 bilhões de anos no passado. Por meio do exame das crateras lunares, sabemos que os impactos de cometas e asteróides eram 15 vezes mais freqüentes nas primeiras eras da vida planetária do que agora. Por esse motivo, o período é conhecido como "Terra Hadeana". Essa situação representa um enigma -por que a vida começaria a se desenvolver no período mais árido e menos hospitaleiro da história do planeta?

Mas se as novas teorias quanto às crateras de impacto forem confirmadas, podemos concluir que, a despeito da freqüência dos impactos devastadores, sistemas hidrotérmicos férteis eram igualmente freqüentes. É possível calcular que esse tipo de sistema provavelmente surgiu em número superior ao de sistemas hidrotérmicos relacionados a atividades vulcânicas, o que faz com que a probabilidade de que as crateras de impacto tenham abrigado o crescimento e a evolução iniciais da vida se acentue.

Mas, como Lee e Charles Cockell, do Grupo de Pesquisa Antártica britânico, em Cambridge, recentemente indicaram, não sabemos por quanto tempo os sistemas hidrotérmicos das crateras de impacto perduram. Se eles forem desativados rapidamente, não teriam grande influência sobre o surgimento da vida, que provavelmente necessitaria de alguns milhões de anos para evoluir de maneira pacífica. Sabemos que as fontes de calor em uma cratera de impacto ficam na superfície, enquanto no caso de um vulcão elas se localizam a alguns quilômetros de profundidade. Além disso, as rochas fervilhantes que geram o calor em uma cratera de impacto ocupam áreas de alguns quilômetros quadrados, enquanto a câmara de magma de um vulcão pode ter milhares de quilômetros quadrados de extensão.

Kalle Kirsime e seus colegas, na Universidade de Tartu, Estônia, usaram um modelo de computador para simular as atividades hidrotérmicas e chegaram a um tempo estimado de resfriamento para a cratera Krdla, de sete quilômetros de diâmetro, na Estônia. Os resultados que eles obtiveram, apresentados durante uma conferência sobre Processos Biológicos em Crateras de Impacto, realizada em Cambridge, Inglaterra, em março, sugerem que as condições hidrotérmicas no local duraram alguns milhares de anos, depois do impacto. Mas Krdla é uma cratera pequena. Para as crateras de maior porte, a atividade hidrotérmica provavelmente teria duração muito maior, já que as fontes de calor demorariam mais a esfriar. Doreen Ames e seus colegas do Levantamento Geológico do Canadá calculam que a atividade hidrotérmica associada à cratera de impacto de 250 quilômetros de diâmetro existente em Sudbury, Ontário, podem ter durado até um milhão de anos. Isso já se aproxima da escala temporal necessária a propiciar o surgimento da vida. Mas com apenas um milhão de anos de prazo para trabalhar, a vida teria de encontrar uma forma de se deslocar de uma cratera em processo de resfriamento para uma nova região de impacto, mais aquecida. Uma maneira de fazê-lo seria por meio de correntes de água subterrâneas ou fontes.

Existem outros motivos para que acreditemos que as crateras de impacto representariam um ambiente ideal para o surgimento inicial da vida. Os impactos conduziriam a um aumento no tamanho e no número dos poros, ou buracos, nas rochas. Na cratera de Haughton, localizamos cianobactérias vivendo em rochas atingidas pelo impacto. Esses organismos "endolíticos" na verdade vivem em minúsculos poros instalados a uma profundidade de cerca de um milímetro na rocha. Mas não existem bactérias semelhantes em rochas similares que não foram afetadas pelo impacto.

Por que esses organismos vivem no interior das rochas? Passe algumas semanas na distante região ártica canadense, especialmente se for durante o inverno, e o motivo se torna aparente. A cratera de Haughton se localiza em um ambiente de deserto polar que é muito seco, e recebe apenas alguns milímetros de chuva por ano. A temperatura anual média na região é de 11 graus negativos, e a cratera sofre com os efeitos severos da radiação ultravioleta. Cockell e seus colegas descobriram que os organismos que vivem nas rochas dispõem de um habitat úmido, protegido contra a radiação ultravioleta e relativamente aquecido. Da formação da Terra, 4,5 bilhões de anos atrás, até o surgimento das primeiras formas de vida, o volume de rochas afetadas por choques teria sido muito mais elevado. Habitats endolíticos estariam amplamente disponíveis, e poderiam ajudar a proteger as primeiras formas de vida contra os ataques da radiação ultravioleta de um planeta então ainda desprovido de uma camada de ozônio.

Já foi iniciada a caçada por indícios fósseis de vida em uma estrutura de impacto antiga. Mas, até agora, nenhum foi encontrado. Encontrar indícios diretos de que a vida existiu, em alguns desses sistemas hidrotérmicos, seria um enorme estímulo para a pesquisa. Infelizmente, é impossível testar a nossa hipótese de que as crateras de impacto possivelmente teriam servido como a origem da vida a menos que encontremos uma cratera realmente antiga. As possíveis crateras com mais de dois bilhões de anos parecem todas ter sido perdidas para a erosão e devido ao movimento das placas tectônicas, que constantemente reciclam a superfície da Terra.

No entanto, não existem placas tectônicas em Marte. E a formação de sistemas hidrotérmicos em crateras de impacto não estaria necessariamente confinada à Terra. Marte também sofreu grande número de eventos de impacto no começo de sua história planetária. Dados obtidos pelas sondas orbitais não tripuladas sugerem que gelo à base de água existe na crosta do planeta, e que talvez exista como parte do subsolo marciano. Se for esse o caso, sistemas hidrotérmicos associados a impactos podem ter existido em grande número, em Marte, e essas fontes quentes e refúgios endolíticos poderiam ter oferecido a oportunidade mais favorável ao surgimento da vida no planeta vermelho. A sonda terrestre Rover, da Nasa, vai pousar na cratera de Gusev em 4 de janeiro de 2004. Existem crateras de impacto em Marte datadas de 3,8 bilhões a 4,5 bilhões de anos no passado. Se essas crateras geraram sistemas hidrotérmicos, talvez algumas abriguem indícios de vida. Encontrar indícios de vida no passado de Marte pode ser a única maneira de responder às perguntas sobre a origem da vida na Terra.

Por enquanto, pelo menos, as crateras estão enfim escapando à publicidade adversa que vinham gerando desde a descoberta de uma cratera de impacto de 200 quilômetros de diâmetro em Chicxulub, México, cuja datação coincide com o momento da extinção dos dinossauros, 65 milhões de anos atrás. Embora o impacto que gerou a cratera de Chicxulub tenha destruído três quartos da vida então existente no planeta, parece igualmente ter reorganizado o equilíbrio do ecossistema mundial, abrindo caminho para a preponderância futura dos mamíferos. Esse duplo padrão de desastre e oportunidade existe desde que a história da vida começou, e talvez já existisse quando ela foi gerada pela primeira vez.

*Gordon Osinski é geólogo da Universidade de New Brunswick, Canadá.

Paulo Migliacci

NASA Haughton-Mars Project

 

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