|
Estudos explicam a
utilidade dos sonhos
A falta de métodos quantitativos e hipóteses testáveis
desacreditou, perante a ciência, as teorias de Sigmund Freud
(1856-1939) e Carl Jung (1875-1961) sobre a utilidade dos sonhos.
Mas, depois de quase um século de distanciamento e rejeição,
estudos recentes têm confirmado que os insights psicanalíticos
tinham fundamento.
Um deles se refere aos "restos do dia", conceito
proposto por Freud para explicar a aparição no sonho de elementos
vindos de experiências vividas no dia anterior. O segundo é o
reconhecimento de que esses sonhos residuais desempenham papel
importante no aprendizado e na consolidação da memória, fazendo
com que as mais recentes migrem do hipocampo para o neocórtex.
No artigo "Sonho, memória e o reencontro de Freud com o cérebro",
publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria, o pesquisador
Sidarta Ribeiro, do Departamento de Neurobiologia do Centro Médico
da Universidade de Duke, em Durham, nos Estados Unidos, se propõe a
descrever a trajetória da neurociência e da psicologia
experimental na comprovação das teorias defendidas pela psicanálise.
» Leia
mais sobre o estudo
A partir da compilação de trabalhos científicos, Ribeiro
afirma que "existe sólida evidência de que a reativação
neural durante o sono provoca o processamento neurofisiológico e gênico
das memórias recentes, explicando o papel do sono e sobretudo dos
sonhos no aprendizado".
Para o pesquisador, o reencontro das teorias propostas pela
psicanálise com o empirismo da ciência não é motivo de surpresa,
uma vez que tanto a neuroanatomia quanto a neurologia eram de
extrema importância na época da formação de Freud.
De acordo com o artigo, o marco de fundação da neurobiologia
dos sonhos foi a descoberta, em humanos, de que longos episódios de
sono sem sonhos, caracterizados por ondas eletroencefalográficas
lentas ("slow-wave sleep", SWS), são sucedidos por episódios
curtos de sono com sonhos, caracterizados por eletroencefalograma
cortical rápido e movimentos oculares involuntários ("rapid-eye-movement
sleep", REM).
Este achado deflagrou um grande progresso no entendimento dos
mecanismos cerebrais responsáveis pela geração dos sonhos. No
entanto, a elucidação das funções biológicas dos sonhos demorou
bem mais a amadurecer. A despeito de estudos experimentais
pioneiros, foi somente após 1970 que a ciência começou a
reconhecer o papel decisivo do sono na consolidação de memórias.
Os principais achados a favor desta visão são: o efeito
negativo da privação de sono sobre a aprendizagem, o aumento da
quantidade de sono após a aquisição de memórias, e o fato de que
ritmos hipocampais típicos do estado de alerta comportamental também
caracterizam o sono REM. Dado o envolvimento do hipocampo na aquisição
de memórias, estes resultados sugeriram que o sono facilita o
processamento de novas de informações.
A investigação dos mecanismos subjacentes ao papel mnemônico
do sono levou a dois resultados importantes: o bloqueio de síntese
protéica durante o sono danifica a aquisição de memórias, e padrões
de atividade neuronal relacionados às experiências da vigília
reaparecem no hipocampo durante o sono. Tendo em vista que o
aprendizado duradouro requer modificações sinápticas dependentes
de atividade neuronal e de síntese protéica de novo, sugere-se que
o sono abriga ambos os mecanismos postulados por Hebb29 como necessários
e suficientes para explicar a consolidação de memórias: reativação
neuronal pós-estímulo ("reverberação") e plasticidade
sináptica ("mudança estrutural").
A reverberação de atividade neural durante o sono foi detectada
em roedores, humanos e mesmo pássaros canoros. Demonstrou-se que
tal reverberação neural preserva relações temporais da atividade
neuronal da vigília, correlaciona-se com o conteúdo aprendido em
tarefas cognitivas, prediz quantitativamente as taxas de aprendizado
antes do sono, chega a durar até 48 horas em várias estruturas
telencefálicas, e é mais robusta durante o sono SWS que durante a
vigília ou o sono REM.
Revista Pesquisa Fapesp
|