Cúmulo da
incoerência
por Fernando
Puga
Papai Noel, Coelhinho da Páscoa, Príncipe Encantado: há fases de nossas
vidas em que esses e os outros muitos mitos que povoam o imaginário coletivo
têm uma função importantíssima, nem que seja para nos ensinar que eles não
existem em realidade. Tanto que a gente vai crescendo, se convencendo disso e
aprendendo que nem sempre o que nos dizem ou ouvimos por aí é a mais
absoluta verdade. Vamos, aos poucos, ajustando os níveis de funcionamento do
nosso desconfiômetro e criando a malícia tão necessária para viver nesse
mundo cheio de meias-verdades. Só que, em algumas pessoas, esse processo é
um tanto quanto lento. Com fama de bobinhas e inocentes, elas caem em qualquer
buraco. Basta alguém por perto para dizer que ele existe.
Com 32 anos na cara, casada e mãe de dois filhos, a médica Carla Bueno se
diz uma dessas. Ela conta que não consegue desenvolver o hábito de
desconfiar daquilo que ouve porque se sente desrespeitando a palavra alheia.
“Parto do princípio de que as pessoas não vão mentir pra mim. Já dei
algumas porradas na vida por causa disso, mas acho que é uma questão de
escolha ser desconfiada ou não. Prefiro jogar sempre com a verdade”, diz. O
problema é que a verdade nem sempre está a fim de jogar com ela. “Eu
passei a minha adolescência e grande parte da vida adulta acreditando
naqueles histórias de lenda urbana. Na verdade, ainda não me convenci
totalmente de que são mentirosas. Por via das dúvidas, não passo muito
perto de mendigos, por conta daquela história que se contava, de que existiam
alguns que usavam uma seringa contaminada com HIV para chantagear as
pessoas”, confessa ela. E-mails com pedidos de ajuda para gatinhos chineses
criados dentro de garrafas e esquimós com moléstias fatais e exóticas têm
lugar especial na caixa de correspondências de Carla. “As pessoas dizem que
é mentira e pode mesmo até ser. Mas fico profundamente sensibilizada. Fico
morta de vontade de ajudar”, garante a médica.
Uma boa oportunidade para conhecer essa gente inocente é o primeiro de abril.
Mesmo com a brincadeira já muito batida de contar mentirinhas para curtir com
a cara dos desavisados sobre o calendário, ainda existem aqueles que se
deixam abater profundamente por elas. “Todo ano, eu caio. Esse ano, meu
chefe me chamou na sala dele e me disse que haveria uma contenção de gastos
na empresa e que seria necessário demitir minha estagiária, que é ótima.
Eu dei um ataque, mas ele foi até o fim na encenação e eu cheguei a chorar.
Mas aí, acho que ele ficou com pena e disse o que era. Fiquei louca de raiva.
Agora, fiz uma programação por e-mail para me avisar sempre, no começo do
dia, quando for primeiro de abril, para eu não ir de otária. Me sinto uma
ridícula quando isso acontece”, conta a advogada Bárbara Fragoso.
Só que essa falta de malícia pode render algo um pouco mais sério do que
pequenos micos. Quando aplicada aos relacionamentos – justamente onde existe
tanto Papai Noel e Coelhinho da Páscoa – ela pode ser sinônimo de decepção.
“Fiquei três anos enrolada com um cara e, apesar de todas as evidências
que hoje em dia são claras pra mim, não acreditava que ele fosse casado. Fui
uma otária completa, me senti uma criança. Eu gostava muito dele, fazia
planos, criei mil expectativas. Pelo menos, aprendi a desconfiar mais das
coisas, acho até que fiquei uma pessoa mais fria. Mas prefiro isso a sentir
me passando por idiota”, revela a maquiadora Cláudia Calil. É sobre esse
ponto que a médica Carla Bueno defende seu mundo inocente. “Não acho que
eu me passe por otária. Como disse, é uma questão de opção. Prefiro
sonhar bastante e até me decepcionar bastante do que me transformar numa
pessoa cética. Acho que a vida desconfiada de tudo deve ser, no final das
contas, muito amarga”, conclui.
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