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Trair e teclar, é só
começar
A internet criou uma nova
maneira de
ser infiel: começa com mensagens, evolui
para confidências, logo entra no reino das
fantasias sexuais. Quando menos se espera,
o marido ou a mulher já estão teclando sem parar com um desconhecido. Mesmo que
nunca se transfira para a vida real,
a traição machuca do mesmo jeito. (Daniela Pinheiro)
Sozinhas, imaginem –, nem
sequer passava pela cabeça da administradora de empresas carioca
Janaína Porto violar a correspondência eletrônica do marido.
"Foi acidental, juro", diz. No dia do tal acidente, ele estava
no trabalho e ela checava os próprios e-mails no computador da
família quando uma luzinha piscou avisando a chegada de uma nova
mensagem. "Ele tinha esquecido o Messenger aberto. De repente,
leio: 'Oi, lindo, ainda não foi para o escritório?' Eu gelei",
conta. Atormentada pelo recado, buscou mais pistas no Orkut do
marido. O conteúdo parecia inofensivo. "Ainda assim, eu sabia
que precisava ir fundo porque ele jamais havia comentado comigo
sobre aquela pessoa que parecia tão íntima", diz Janaína, que,
numa atitude que ela mesma considera "bizarra", contratou um
detetive virtual. Em uma semana, teve em suas mãos um relatório
com todos os e-mails e mensagens de MSN, Orkut e ICQ trocados
pelo marido. "Fiquei chocada. Além dela, ele falava com outras
mulheres. Chamavam-se por apelidos, tinham conversas de sentido
dúbio, passavam até três horas seguidas teclando. Pelo que deu
para perceber, ele nunca foi para a cama com nenhuma, mas havia
uma troca de confidências, uma cumplicidade e uma intensidade
que havia anos nem eu provava mais", lamenta. O casamento de dez
anos sofreu forte impacto. O marido não comenta o assunto, mas
Janaína não tem dúvidas: "Sim, considero que ele me traía".
Qualquer pessoa normal – o que
exclui da lista os não ciumentos – tende a concordar com
Janaína. A traição não é apenas o contato físico, mas também, e
de forma tão ou mais insuportável para o traído, a miríade de
detalhes que apontam para a intimidade emocional: o sentimento
de cumplicidade, a deliciosa excitação de esperar pelo chamado
do outro, as confidências sobre segredos e fantasias, o prazer
de ir para a cama pensando que amanhã tem mais. Na era
pré-eletrônica, dificilmente esses componentes deixariam de
desaguar em seu destino natural – a cama. Hoje, os serviços de
bate-papo pelo computador, como e-mail, Messenger e Orkut,
criaram novos paradigmas de traição e sua contrapartida, o
ciúme. Existe a forma mais básica: conhecer alguém pela rede,
marcar um encontro e trair. Existe o sexo virtual, que dispensa
explicações. E, por fim, a forma mais complexa de
relacionamento, talvez a única inovação real num campo em que
não parecia haver nada de novo sob o sol desde os primórdios da
humanidade, que poderia ser chamada, numa espécie de neologismo,
de e-infidelidade. Começa com a troca de mensagens eletrônicas,
o envolvimento vai crescendo, estabelece-se um vínculo íntimo.
Tem todos os ingredientes de um caso extraconjugal, mas, na
maioria das vezes, o contato físico pode nem ocorrer. Usa-se até
um termo do vocabulário eletrônico – teclar – para descrever o
contato. Nos consultórios médicos e de terapeutas, esse tipo de
comportamento está se tornando uma das maiores queixas de
maridos e mulheres. Cresce também o ambiente de paranóia
eletrônica: cônjuges inseguros passam a espionar mensagens,
investem contra o outro no Orkut e chegam a usar programas de
hackers.
Quando se desconfia ou se descobre
um aspecto da vida da cara-metade sobre o qual não se tinha a
menor idéia, sobretudo se envolve um laço com alguém do sexo
oposto, a maioria das pessoas quer saber mais. Aí, em geral, se
repete um padrão de comportamento que não tem nada de novo: o
desconfiado solta indiretas, lê e-mails, vasculha a vida virtual
do cônjuge e faz marcação cerrada sobre a vida real, em busca de
pistas da traição. Cria-se um círculo estressante, cada vez mais
amplo, quando se passa a espionar também a vida de todo mundo
que é, de alguma maneira, ligado ao infiel em potencial. Pode
ser quem mandou a mensagem, quem conhece a pessoa que mandou, os
parentes dela, e por aí vai. "Dito assim, parece que estamos
cercados de obsessivos descontrolados, mas o que ocorre é que
realmente a internet despertou nas pessoas um ciúme desmedido
uma vez que permite que se vigiem coisas que sempre ficaram
trancadas na privacidade de cada um", afirma o sexólogo carioca
Amaury Mendes Júnior.
Entender o romance sem sexo
envolve conceitos subjetivos, mas qualquer um que tenha passado
pela infidelidade emocional, ou branca, como chamam os
especialistas, não tem a menor dificuldade em identificá-la.
"Ela tem um potencial tão devastador para afetar uma união
quanto se um dos cônjuges tivesse sido pego na cama com outra
pessoa", diz o psiquiatra Ronaldo Pamplona da Costa, da
Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana.
Classificar uma conversa por e-mail como infidelidade só parece
exagero para quem ainda não sentiu na pele – ou na tela. Uma
pesquisa apresentada na última conferência anual da Sociedade
Britânica de Psicologia mostrou que 84% dos entrevistados
consideravam esse tipo de comportamento traição, sim. "Ele
falava com umas três mulheres todos os dias", conta Ráissa
Ribeiro, 19 anos, modelo, sobre a crise que a levou a ficar
quatro meses separada do marido, Adyr Bandeira Júnior, 25,
empresário. "Todo o meu ódio era porque eu percebi que havia uma
intimidade, quase um compromisso. Se fosse uma coisa boba, com
desconhecidas, uma vez só, acho que eu não me importaria." A
separação abalou o marido. "Ela tem razão na crítica. Eu
realmente extrapolava", reconhece Adyr, que diz continuar
teclando com desconhecidas, mas sob a supervisão de Ráissa – o
que equivale mais ou menos a assistir a um filme erótico com a
sogra ao lado. "De vez em quando ela entra de outro computador
na sala em que estou, para dar uma conferida."
"Falar que não teve relação
sexual é sempre uma boa defesa. Mas é grave dividir uma parte
significativa da vida emocional com alguém e criar um vínculo
que exclua o marido ou a mulher. Esse costuma ser o primeiro
passo para a traição", afirma a psicóloga brasileira Beatriz
Ávila Mileham, da Universidade Santa Clara, na Califórnia,
coordenadora de uma pesquisa sobre o assunto. A infidelidade
branca abre uma ferida no coração, sem dúvida – mas a traição de
fato arranca sangue. É impossível avaliar com certeza quantos
dos casos virtuais redundam em sexo real. Uma pista: segundo a
revista americana Psychology Today, estudos recentes
indicam que, em 60% dos casos, um relacionamento contínuo e
profundo pela internet termina na cama. "É por isso que muitos
escondem essa relação do cônjuge. Eles sabem que, no fundo, há
uma tensão sexual ocorrendo", diz Magdalena Ramos, coordenadora
do núcleo de terapia de casal e família da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
Entre as transformações
monumentais trazidas pelo advento da internet, talvez as mais
surpreendentes sejam as ocorridas no campo do comportamento
sexual. O acesso instantâneo a informações e contatos
praticamente sem limites trouxe à tona uma torrente de desejos
que, décadas depois da revolução sexual, ainda surpreendem. O
anonimato e a multiplicação de oportunidades alimentam o furor
erótico, seja para procurar parceiros, reais ou virtuais, seja
para escarafunchar todas as variantes sexuais já inventadas pelo
ser humano – e algumas outras das quais ninguém nunca tinha
ouvido falar. Liberados, ainda que momentaneamente, dos freios
que delimitam o eterno embate entre pulsões sexuais e
civilização, os usuários aproveitam. "O homem que diz que não
gosta de entrar num site pornográfico está mentindo", diz o
empresário R.F.L. em seu depoimento sobre experiências variadas
na rede (veja
quadro). Um levantamento da Yankelovich Partners Inc
mostra que 60% das páginas visitadas na internet têm algum
conteúdo sexual. A palavra sex é a mais escrita nos sites
de busca em todo o mundo.
O acesso ilimitado a contatos com
parceiros reais ou virtuais é contrabalançado pela possibilidade
de que a parte que se sente enganada parta para a espionagem
eletrônica. No Orkut, 9 milhões de brasileiros expõem suas
informações a quem queira ver. Assim, o marido vasculha o Orkut
da mulher, a mulher o do marido, o ex o da ex, a ex o da atual
do ex, e todo mundo tira suas próprias conclusões. As crises de
ciúme são praticamente inevitáveis. No próprio Orkut, há mais de
200 comunidades tratando do assunto. "Minha namorada vigia meu
Orkut" tem inacreditáveis 25.000 participantes. "Você começa
olhando uma vez por dia, depois duas, três. Eu cheguei ao ponto
de olhar a página dele de cinco em cinco minutos para ver o que
as mulheres escreviam para ele. Depois ia lá tomar satisfação",
conta a assistente de marketing paulistana Patrícia Basílio, 33
anos, casada há dezoito, autora da instigante comunidade "Peruas
no Orkut do meu marido". Antes convencida de que não havia nada
que pudesse fragilizar seu casamento, ela ficou insegura. A cada
mensagem feminina para o marido, um temporal desabava sobre o
casal. "Olha, eu me sentia ridícula porque nunca fui ciumenta,
mas aquilo me devastava. Não sabia o que era tudo aquilo, quem
eram aquelas mulheres. Um dia, uma escreveu para ele: 'Saudades,
você sumiu'. Se ele sumiu é porque um dia apareceu, não é? Eu me
descontrolei", conta. Para evitar mais confusões, o marido
cancelou seu registro. "Foram tantas brigas, tanta choradeira,
tanto escândalo que eu preferi sair daquilo", diz o empresário
Dener Basílio, 37 anos. Se no Orkut boa parte da conversa é
pública, no MSN é possível mantê-la em total privacidade. "Eu
passava muito tempo em conversas com um amigo. É óbvio que havia
um clima sério. Eu me sentia viva, sedutora, desejada. Nunca nos
tocamos. Mas, quando você fica empolgada com a situação, quando
sente que está fazendo algo errado, acho que isso é o indicador
de que você está traindo", diz a administradora de empresas
carioca Patrícia Perrett, 32 anos, que manteve esse vínculo
diário paralelamente a um sólido relacionamento.
O anonimato e a privacidade
propiciados pela internet são poderosas ferramentas de indução à
quebra de barreiras. Diante do computador, você pode ser quem
quiser, falar o que tiver vontade sem passar pelos sucessivos
julgamentos que o contato frente a frente propicia. Tudo fica
mais explícito e exposto. Para paquerar pessoalmente, é preciso
decifrar muitos sinais, vencer a timidez e ainda se assegurar de
que ninguém vai descobrir nada. No ciberespaço, o contato é
rápido, seguro e fácil. Para os especialistas, as razões do
crescimento desse tipo de vínculo entre adultos comprometidos
têm a mesma matriz: o prazer de exercitar o poder de sedução e
conquista, aspectos que compreensivelmente desaparecem do
casamento. Os efeitos sobre a vida do casal podem ser enormes.
"A paquera passa a ocorrer na sala da sua casa. Isso é
assustador", diz a fotógrafa carioca Margaret Manta, 44 anos.
Desde que ela e o marido, Wagner Rios, 32, se inscreveram no
Orkut, as cenas de ciúme se tornaram constantes. "Ver todo
aquele movimento de mulheres mexe com a relação, sim", diz ela.
Wagner corrobora a tese: "Eu fico com raiva quando leio algumas
mensagens porque acho que a pessoa, no caso ela, dá liberdade
para os outros falarem com um tom de intimidade acima do normal
entre amigos."
Na busca para amenizar os
conflitos gerados pela internet, muitos casais passaram a exigir
as senhas pessoais do (a) parceiro (a). A senha do e-mail
assumiu o significado que tinha a senha de banco anos atrás –
como se fosse a expressão mais enfática de compromisso. Algo do
tipo: "Se você não apronta, então me dá sua senha". Quem chega
ao exagero de se propor a realmente investigar o outro encontra
muitas ferramentas disponíveis. Há uma série de programas de
computador para todos os fins e bolsos capazes de grampear
mensagens e replicá-las para outras pessoas. Programas como
Spector Pro 5.0, eBlaster, Keylogger e ScreenLogger são
instalados nas estações de qualquer computador por meio de um
e-mail. Passam, então, a enviar informações de tudo o que se faz
na máquina. Pode-se baixar o programa em casa, mas quem não
entende de informática costuma procurar um serviço
especializado. Por cerca de 2.000 reais, o detetive vai até o
computador do casal, instala o programa e passa a acompanhar a
correspondência. Se a máquina está no trabalho, opta-se por
outra estratégia. "Descobrimos os hábitos da pessoa. Se ela
gosta de gastronomia, por exemplo, mandamos uma mensagem sobre
esse assunto. Se ela abrir, o computador já passa a ser
monitorado", explica o detetive Francisco Aguiar, da
Philadelphia Investigações, em São Paulo, com 22 anos de
experiência em apurar casos de infidelidade. Embora esses
programas sejam eficazes para desvendar as infidelidades
virtuais, seu uso pode virar caso de polícia, já que se trata de
um crime de violação de uma forma de intimidade que é garantida
por lei.
Esse tipo de prova, porém, se
tornou comum em casos de separação. Nos grandes escritórios de
advocacia, em 90% das separações são apresentadas cópias de
e-mails e mensagens de Messenger e Orkut para configurar o que
se chama de "quase-adultério". É preciso que um dos cônjuges
autorize a violação do computador da casa para não criar
problemas com a Justiça. Por exemplo: se a esposa acessa o
computador doméstico e acha mensagens gravadas .– sem nenhuma
proteção de senha – que demonstram que o marido foi infiel,
nesse caso a prova é válida e legal. "Para configurar o
adultério é necessário provar a conjunção carnal. Já essa figura
jurídica do 'quase-adultério' significa toda situação amorosa na
qual você não prova o sexo, mas prova o envolvimento amoroso",
afirma a advogada Priscila Corrêa da Fonseca, uma das maiores
especialistas em direito de família do país.
Evidentemente, não é a
internet que estraga os relacionamentos. Mas que potencializa o
dano, potencializa. O clima de suspeita e desconfiança também
transforma qualquer casamento num inferno – sem contar que não
redunda em nada positivo. "Ler mensagem, vigiar conversa, nada
disso funciona. Não se consegue entrar na cabeça do outro. É lá
que mora o desejo. E isso ninguém nunca vai conseguir
localizar", explica o psicanalista e colunista Alberto Goldin,
autor do livro Histórias de Amor e Sexo. Na opinião dos
estudiosos do assunto, uma coisa é clara: o uso da internet já
se tornou um dos assuntos inescapáveis na vida dos casais (além
de dinheiro, valores morais, quem fica com o controle remoto).
"É uma discussão tão importante para o relacionamento quanto a
intenção de ter ou não filhos", afirma a psicóloga Beatriz
Mileham.
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