VoIP: sem regras, só confusão

Ceila Santos, especial para o COMPUTERWORLD

Donas de cerca de 90% dos 18 bilhões de reais gerados em 2004 por ligações interurbanas no País, Brasil Telecom, Telefônica e Telemar, as três todo-poderosas da telefonia fixa, resolveram reagir à ameaça da voz sobre IP. Afinal, além do fenômeno mundial Skype, as concessionárias estão atentas à presença de pequenas e médias empresas como Tmais, Hip Telecom e a pioneira GVT, que oferecem como alternativa às tarifas de longa distância (DDD e DDI) o serviço de voz sobre IP aos usuários de banda larga.

Enquanto a Brasil Telecom e a Telefônica anunciaram que vão lançar ofertas de VoIP entre o fim deste ano e o primeiro trimestre de 2006, a Telemar resolveu incluir uma cláusula no contrato de seu serviço banda larga Velox proibindo o usuário de trafegar VoIP. A iniciativa trouxe à tona a discussão sobre o que é ou não permitido na oferta da telefonia do Brasil.

A resposta da Anatel, órgão responsável pela regulamentação do setor, retrata literalmente o resultado da ausência de regras claras e da falta de posicionamento do governo diante de tantas mudanças tecnológicas nas telecomunicações. Isso porque, procurada pelo COMPUTERWORLD Online, a agência informou que a cláusula da Telemar era permitida porque a operadora oferecia o serviço de dados em regime privado, o qual não tem intervenção regulamentatória e, por isso, a Telemar teria o direito de agir como lhe convém. Um dia após a notícia veiculada no site do COMPUTERWORLD, a Anatel voltou atrás e explicou que como o serviço de dados é prestado por meio da licença SCM (Serviço de Comunicação de Multimídia), que implica na oferta de sinais de dados, voz e imagem, a operadora não teria o direito de restringir o acesso de nenhum sinal multimídia, inclusive voz.

Como resultado dessa confusão de declarações e interpretações, a Telemar foi obrigada a alterar a tal cláusula que proibia o tráfego de voz pela banda larga. O novo texto do contrato ficou assim: "A utilização do serviço deve estar em conformidade com a regulamentação, em particular, o serviço não pode se confundir com o (STFC) Serviço Telefônico Fixo Comutado e as chamadas para comunicação de voz devem ser cursadas nas devidas interconexões". Em resumo, o novo contrato recomenda ao usuário utilizar voz pelos meios tradicionais, eliminando a probição.

Sim ou não?

Diante desse fato, volta mais uma vez a dúvida: VoIP deve ser regulamentado ou não? Até o momento, os superintendentes da Anatel têm um discurso contrário à regulamentação. Eles alegam que VoIP é uma tecnologia e que a agência não regulamenta tecnologia. "A Anatel é responsável pela regulamentação de serviços", costumam dizer os representantes do órgão. O que equivale a dizer que os prestadores que têm licenças STFC e SCM são quem vão oferecer o serviço de voz sobre IP.

"Está claro que não precisa regulamentar VoIP", opina Guilherme Ieno Costa, advogado do Felsberg Associados. Ele explica que a tecnologia VoIP presta dois tipos de serviços que já são regulamentados: "Quando o usuário baixa um software como o Skype, que está hospedado na internet, o VoIP é um serviço de valor adicionado (SVA), permitido pela licença SCM. E quando o tráfego de VoIP sai da internet para a rede pública, é um serviço de telecomunicações de voz, permitido pelas duas licenças (SCM e STFC)".

Para o especialista, o que deve ser feito é adaptar as licenças STFC e SCM com o objetivo de suprir as dificuldades de cada prestador de serviço. "A licença de STFC, por exemplo, é bastante onerosa em função das metas de qualidade e de universalização. Isso deveria ser revisto. Por outro lado, as SCM não têm direito de receber as tarifas de interconexão, o que também é injusto", acrescenta Costa.

O vice-presidente da unidade de VoIP da GVT, Rodrigo Dipienstmann, também concorda que a tecnologia não deve ser regulamentada. "O que precisamos é de uma garantia de que haverá punição quando as regras atuais forem desrespeitadas", alfineta Dipienstmann. O presidente da Telcomp, Luiz Cuza, também é contra a regulamentação e ressalta que quanto mais ampla e mais flexível forem as regras, mais competição terá o mercado nacional.
Em resposta enviada por email, André Bianchi, diretor de estratégia corporativa da Telemar, diz que é a favor da regulamentação de VoIP e explica que a regra deve ser a mesma para todos que fazem parte desta competição. "Não faz sentido em qualquer mercado a competição de serviços regulados e fiscalizados com produtos não regulamentados e não fiscalizados. Nesta situação, os produtos não regulamentados são sempre predatórios e, no caso do Brasil, contrariam ao interesse público", entende o executivo. A visão do vice-presidente da unidade VoIP da GVT é justamente o contrário: "Quem mais ganha sem a regulamentação do VoIP é o consumidor, que pode se beneficiar com a inovação".

Falhas do passado

A sensação que se tem é que o grupo das todo-poderosas é a favor da regulamentação de VoIP, enquanto as empresas concorrentes, que têm licenças SCM e alguns casos também de STFC, são contra a regulamentação do serviço. A Brasil Telecom e a Telefônica não se posicionaram em relação às regras, informando apenas que vão lançar o serviço com o objetivo de oferecer mais uma inovação aos seus usuários de banda larga.

O motivo desse conflito de interesses é simples: o serviço VoIP provoca uma queda representativa na receita de voz de longa distância, cujo mercado é dominado pelas três empresas, juntas com Embratel e Intelig. Além disso, Telemar, Telefônica e Brasil Telecom são responsáveis por mais de 90% dos usuários de banda larga do Brasil. Ou seja, elas são as donas dos requisitos mínimos de acesso para a oferta de VoIP. Nenhum instituto de pesquisa conseguiu mensurar ainda o movimento gerado pelas pequenas empresas do segmento, como Tmais, Hip Telecom e a pioneira GVT. Mas tudo indica que os usuários de banda larga estão aderindo cada vez mais ao uso de voz via internet.

O problema é que apesar de VoIP estar contemplado pelas licenças STFC e SCM, essas licenças ainda não têm todos os requisitos básicos para oferta do serviço. Exemplo disso é o plano de numeração da licença SCM prometido pela Anatel desde 2003. "Essas operadoras têm o direito de oferecer voz, dados e imagem ao usuário; mas não têm os números telefônicos. Isso prejudica as empresas porque, pelas regras, elas jamais terão direito às tarifas de interconexão", explica Cuza, da Telcomp. Isso acontece porque como as empresas SCM não têm números telefônicos, conseqüentemente, não têm ligações geradas em suas redes.

A alternativa adotada pelas companhias exclusivamente SCM foi adquirir números telefônicos das concessionárias no atacado e vender no varejo. Costa, da Felsberg Associados, explica que não há nada ilegal neste processo comercial, mas reconhece que esse não é o ambiente ideal. Essa estratégia, aliás, foi adotada pela Skype - referência mundial de VoIP - no Brasil para vender seu serviço que permite aos seus usuários falar com os usuários da rede tradicional. Marcos Bafutto, superintendente de serviços públicos da Anatel, já se manifestou que a estratégia é permitida porque a empresa que vende os códigos de numeração tem a licença de prestação de serviço. E será fiscalizada conforme sua outorga.
Bafutto inclusive acrescentou, na época, que a preocupação da agência é uma situação inversa: o usuário adquirir um equipamento no exterior e utilizá-lo para se comunicar no Brasil. "Não temos controle para tributá-lo e, neste caso, há uma ilegalidade no uso do VoIP. Essa questão, porém, é considerada um obstáculo mundial da oferta de voz sobre IP e deverá ser solucionada junto com os demais países", acredita o superintendente.

Mas não são apenas essas falhas no regulamento SCM que prejudicam a evolução da oferta de voz sobre IP. Existem ainda as restrições tecnológicas que impedem o roteamento de chamadas para serviços de emergências e as interceptações telefônicas. O advogado da Felsberg Associados informa que "todas as operadoras são obrigadas a oferecer acesso aos serviços emergenciais e garantir à Justiça o acesso ao meio telefônico quando for necessário". Essas obrigações, entretanto, nem sempre são possíveis por meio do serviço VoIP, uma vez que a prestadora não tem condições de identificar os três códigos de serviços emergenciais em alguns casos.

O vice-presidente da unidade de VoIP da GVT diz que tecnicamente essas obrigações são possíveis. O problema é o custo. Não por acaso, a Câmara dos Deputados está analisando dois projetos de lei - em um deles, a prestadora arca com o custo da interceptação judicial e o outro é a Justiça que paga pelo serviço. A Anatel já se pronunciou que está aguardando a tramitação desses projetos para avaliar a linha que irá adotar como regra no Brasil.

Outra espera da Anatel é em relação ao plano de numeração do SCM. Bafutto já comentou que os códigos do SCM deverão ser adaptados para a oferta VoIP e que aguarda apenas a definição dos demais países para seguir a linha mais adequada ao serviço. Enquanto a agência aguarda a parcimônia dos deputados para avaliar a interceptação em VoIP e dos demais países sobre os códigos de numeração, o mercado vai criando suas próprias regras e os usuários adotando a tecnologia - muitas vezes sem saber que quando precisar discar os códigos para Polícia ou Emergência, o VoIP pode falhar.

Barreiras das atuais regras

Entenda como as empresa puramente VoIP conseguem oferecer o serviço dentro da lei:

- Empresas como Skype - que não têm presença no Brasil -, compram números telefônicos no atacado por meio de representantes SCM e oferecem ao usuário que baixou o software na internet a possibilidade de conversar com a rede pública de telefonia como um serviço pago. A mesma estratégia é adotada pelas companhias que só têm licenças SCM.
PROBLEMAS: sem número telefônico, as SCM não podem cobrar o tráfego de interconexão das concessionárias. Se o usuário adquirir o terminal com número telefônico internacional, pode utilizar o mesmo serviço sem pagar tributos, mas paga ligação DDD e DDI.

- Empresas que têm licenças SCM e STFC, como Brasil Telecom, GVT e Telefônica, podem oferecer não só a banda larga como também o número telefônico, além de receber as tarifas de interconexão porque são detentoras das linhas. No caso da Telefônica e da Brasil Telecom, o problema está na perda de receita das ligações interurbanas. Apesar de a GVT também oferecer serviços de ligações de longa distância, não tem o monopólio dos usuários como as concessionárias.

  

 

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