Café - agora ele faz bem


Brasil investe em estudos para combater preconceitos e testar eficácia da bebida

Giovana Girardi

Quem acompanha o noticiário de saúde já deve ter notado que frequentemente aparece uma matéria que aponta malefícios ou benefícios do café. De um mês para o outro, a bebida passa de causadora de uma doença para agente preventivo de outra. Mas em vez de auxiliar, essa enxurrada de informações só mantém a dúvida: afinal, café faz mal ou bem para a saúde?

Ao longo da História, a bebida chegou a ser vista quase como um elixir, capaz de resolver problemas que iam de impotência sexual a sarampo, mas com o tempo foi ganhando a má fama de ser viciante e de fazer mal à saúde, principalmente após a descoberta da cafeína, associada a úlceras e doenças cardíacas.

Estudos recentes, entretanto, têm minimizado o efeito nocivo da substância e destacado o lado 'mocinho' da bebida. As pesquisas sugerem que o café, consumido em doses moderadas, pode ser benéfico contra as mais variadas doenças, como mal de Parkinson, diabetes, derrame, pedra nos rins e até mesmo câncer ou Aids. Investigações mais avançadas relacionam o consumo de café a menores taxas de depressão, alcoolismo e suicídio. Os dados são tão promissores que no Brasil uma indústria farmacêutica já obteve a patente de um remédio fitoterápico à base de café para testar sua ação como antidepressivo.

O Brasil, como maior produtor de café do mundo, está encabeçando várias pesquisas sobre os benefícios do consumo da bebida. No começo do ano a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) lançou o núcleo de estudo 'Café e Saúde' e no mês passado promoveu um simpósio internacional para debater as últimas descobertas, ao mesmo tempo que lançou a revista 'O Café e a Saúde Humana'.

Uma das principais metas é comprovar os dados sugeridos por estudos epidemiológicos de que o consumo regular de café, até no máximo meio litro por dia (ou 500 mg de cafeína), é benéfico para o humor e, por isso, pode prevenir depressão. Algumas pesquisas usadas como base são as feitas pelo norte-americano Arthur Klatsky, que constatou, em 1993 e 2001, menos casos de cirrose e suicídio entre consumidores regulares de café. Outro levantamento, feito em 1996 com 86 mil mulheres pela Universidade Harvard, nos EUA, apontou uma relação inversa entre consumo de café e risco de suicídio.

De acordo com Darcy Lima, professor de farmacologia na UFRJ e uma das maiores autoridades sobre café e saúde no Brasil, esses dados não são conclusivos, mas sugerem uma ação da bebida no sistema nervoso central, modulando o estado de humor da pessoa. Essa característica seria provocada por uma substância descoberta recentemente no café e que parece estar ligada aos maiores benefícios atribuídos à bebida: os ácidos clorogênicos.

Acredita-se que esse composto pode ajudar a prevenir a depressão, uma vez que ele tem ação direta sobre o sistema de gratificação (felicidade) do cérebro. Quando desregulado, esse sistema pode levar a depressão, alcoolismo e consumo de drogas. Quem está triste, por exemplo, tem menor produção de endorfina (substância como a morfina e que está ligada ao prazer). Na falta deste opióide, ficam sobrando no cérebro os seus receptores, que 'pedem' pela substância. Isso pode levar ao vício por drogas, que compensam o sistema.

Os ácidos clorogênicos bloqueiam a ação desses receptores em excesso, 'fechando' a vontade de se gratificar, explica Lima, que estuda a ação da substância no Instituto dos Estudos do Café na Universidade Vanderbilt, nos EUA. Segundo ele, remédios usados contra alcoolismo, como o naltrexona, atuam desse modo, o que leva a supor que o café pode funcionar preventivamente nesse sentido.

A perspectiva é tão boa que o laboratório brasileiro Biosintética está iniciando os estudos para a criação de um remédio fitoterápico à base da fruta. Os pesquisadores estão trabalhando com um extrato composto por 8% de cafeína e 32% de ácidos clorogênicos (o café, de um modo geral, tem a proporção de 1% para 4%, dependendo da torra) e estão em fase de teste com animais. 'Se for confirmada a ação no sistema de gratificação, o medicamento poderá agir não só como antidepressivo, mas também no tratamento da síndrome de abstinência', afirma o diretor médico-científico do laboratório, Marcio Falci.

A ação no cérebro

  • O café possui compostos conhecidos como ácidos clorogênicos que agem como antagonistas opióides, ou seja, reduzem a necessidade exagerada de substâncias como endorfina (a nossa morfina natural). Eles bloqueiam a ação dos receptores do opióide e com isso modulam a produção de dopamina no núcleo accumbens, melhorando o humor, sem viciar
  • A cafeína sozinha age diretamente no núcleo accum bens, despejando grande
    quantidade de dopamina no córtex, o que poderia viciar

Depressão e coração

Outro grupo que está interessado nos possíveis efeitos do café para o controle da depressão são os cardiologistas. O médico brasileiro Mario Maranhão, ex-presidente da WHF (Federação Internacional de Cardiologia, na sigla em inglês), em parceria com Darcy Lima, está planejando um estudo para averiguar se essa atuação da bebida pode ter impacto sobre doenças cardíacas, principalmente enfarte. Maranhão defende a investigação com base em um outro projeto feito pela WHF e pela OMS (Organização Mundial da Saúde). 'Devemos finalizar até meados de 2004 um estudo sobre a relação entre depressão e enfarte, mas já sabemos que ela é um fator de risco. Se o café pode prevenir isso então pode ser que diminua o risco ao coração.'

Maranhão pretende analisar 40 mil pessoas num período de 10 anos no mundo inteiro. Para isso, espera contar com 4 mil médicos. O estudo chegou a ser anunciado pela OMS há quatro anos, mas não teve continuidade. Os especialistas acreditam que isso ocorreu por conta do preconceito que ainda existe em relação ao café e aos malefícios atribuídos à cafeína. 'Todo mundo fala nisso, mas café não é só cafeína. Ela só representa 1% da bebida e em quantidades moderadas faz bem', defende Lima. A substância estimula o sistema nervoso reduzindo a sonolência, a apatia e a fadiga. 'Ela favorece a atividade intelectual da pessoa, deixando-a mais alerta e concentrada. Estudos mostram que há um aumento de até 15% da agilidade mental', diz.

Mas essa vantagem pode se transformar em dano quando a intenção é ficar acordado durante a noite para estudar ou trabalhar. 'O café é uma bebida diurna. Tomá-la à noite com esse intuito pode prejudicar a atenção e a concentração no dia seguinte. E a consolidação da memória ocorre justamente durante o sono.'

Entretanto, por mais benefícios que a cafeína possa trazer, tudo em excesso faz mal. Em quantidade superior aos 500 mg recomendados por dia (mais de quatro xícaras grandes) ela pode causar arritmia, ansiedade, estresse, insônia, dor de cabeça, irritabilidade, tremores e diarréia. Quem sofre de estresse, problemas psiquiátricos, gástricos ou cardíacos deve ter cautela, assim como pessoas com osteoporose e gestantes. A cafeína aumenta a eliminação de cálcio e, em altas doses, pode levar a abortos. Mas para causar a morte de um homem adulto, seriam necessárias de cinco a dez gramas de cafeína (cerca de 50 a 100 xícaras), algo que ninguém agüentaria tomar.

'O que queremos demonstrar é que em longo prazo o consumo de café é um hábito saudável que deve ser seguido. Não é remédio ou cura para todas as doenças, mas pode prevenir problemas futuros', afirma Lima.

Cafezinho vicia ou não?

Uma das maiores polêmicas em torno do cafezinho é sobre o suposto fator viciante da bebida.

Quem bebe com freqüência sabe que às vezes é impossível começar o dia sem uma boa dose dele e não são raras as pessoas que, na ausência do produto, relatam sintomas que parecem abstinência, como tremor ou dor de cabeça. Mas ainda não há nenhum estudo conclusivo.

'Para viciar, é preciso atingir o sistema de recompensa e gratificação do cérebro', explica a neurologista Suzana Herculano. Em 2002, um grupo de cientistas dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA mostrou que, em ratos, a cafeína age direto no núcleo accumbens (no centro desse sistema), liberando dopamina, substância ligada ao prazer. Drogas como morfina, cocaína e álcool também atuam nesse sistema.

Para Darcy Lopes, isso não se aplica para consumidores de café, uma vez que a bebida não tem só cafeína - defeito, aliás, que ele critica no estudo, que não considerou o café como um todo. 'A quantidade presente não é capaz de acionar o processo. A cafeína acaba se concentrando no córtex, estimulando a vigília', afirma. 'Em compensação, os ácidos clorogênicos têm efeito contrário, modulando o sistema de gratificação.'

Além disso, nunca se viu ninguém que precise cada vez mais de café, ao contrário do que ocorre com as outras drogas.

Para navegar

Para ler

  • 'The World of Caffeine', Bennett Alan Weinberg e Bonnie Bealer. Routledge. Londres. 2002

Consumo diário adequado

Até 10 anos:
de 100 a 200 ml (20 g de pó ou 200 mg de cafeína)*

De 11 a 15 anos:
de 200 a 350 ml (35 g de pó ou 350 mg de cafeína)*

De 16 a 20 anos:
de 400 a 450 ml (45 g de pó ou 450 mg de cafeína)*

De 21 a 60 anos:
de 400 a 500 ml (50 g de pó ou 500 mg de cafeína)*

Acima de 60 anos:
de 200 a 300 ml (30 g de pó ou 300 mg de cafeína)*

* Máximo recomendado por dia, dividido em quatro doses consumidas até o meio da tarde. Não é aconselhável o consumo à noite. Para crianças e idosos, é melhor servir com leite

Fonte: Darcy Lima, professor de Farmacologia Clínica e História da Medicina da UFRJ

 

 

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