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Doente de verdade
A hipocondria pode ser
um transtorno mental
e já tem até tratamento
Cilene Pereira e Lena Castellón
Teste: você é hipodondríaco?
Para muita gente, a hipocondria é tema de
piada. Afinal, quem nunca cismou ou conhece alguém que teima estar doente,
mesmo sem apresentar sinais claros de enfermidade? O problema é que para
algumas pessoas a crença de que há algo errado com elas interfere no
dia-a-dia, causa angústia e até depressão. Nesses casos, a moléstia irreal
provoca um sofrimento verdadeiro. E há situações em que o quadro perdura por
anos devido à falta de interesse dos profissionais de saúde pelas
queixas do hipocondríaco. Ele anda de um consultório para outro sem encontrar
um médico disposto a lhe apontar uma saída. Hoje, porém, a situação começa
a mudar. A preocupação excessiva com a saúde já é levada a sério. Ela é
considerada um transtorno mental se o indivíduo tem medo de padecer de uma moléstia
grave, persiste nesse tormento mesmo após avaliação médica, sofre por causa
disso e tem a vida social prejudicada em virtude de seu estado. “Ele tem a
convicção de que a doença que imagina acabará com sua vida”, diz o
psiquiatra Miguel Roberto Jorge, da Universidade Federal de São Paulo. A doença
tem até tratamento, que consiste em psicoterapia e, às vezes, medicação
(antidepressivos e ansiolíticos).
A hipocondria é um problema tão antigo que os
primeiros relatos a seu respeito foram feitos por Hipócrates, o pai da
medicina. A origem de seu nome está associada a queixas de dor na região do
hipocôndrio, palavra grega que se refere à uma área abdominal abaixo das
costelas. Estima-se que 3% da população tenha alguma manifestação do
problema. Na galeria de famosos hipocondríacos, estão o evolucionista Charles
Darwin, o filósofo Immanuel Kant, o compositor Ludwig Van Beethoven e o
escritor Samuel Johnson. Existem graus leves ou simples traços de hipocondria.
São estes, normalmente, que alimentam as brincadeiras. O cantor Toquinho é um
dos alvos dos amigos. Preocupado com a saúde, ele carrega seus remédios para
todos os lugares por onde viaja. “É por precaução”, diz ele. “Sou um
hipocondríaco saudável”, completa, bem-humorado. Para o psicanalista Rubens
Volich, professor do Instituto Sedes Sapientiae, de São Paulo, as queixas
dessas pessoas também devem ser levadas a sério. “Qualquer sintoma exige
respeito, mesmo que seja bizarro”, garante.
Mas é comum que os médicos se irritem ao
deparar com um paciente cheio de lamentações, porém sem sintomas reais. E
muitos profissionais cedem às queixas. “Já vi o caso de uma pessoa que
sofreu seis cirurgias porque conseguiu convencer o médico de que estava com
algo muito sério”, conta Miguel Jorge. Este é um sério problema. Como
diagnosticar a hipocondria e evitar a ocorrência de casos assim? Ainda não há
uma receita. Cabe ao médico usar toda a sua sensibilidade. “Em geral, o
hipocondríaco chega no consultório com uma pasta enorme onde guarda seus
exames. Ele não sabe o que procura. Busca uma doença”, conta o neurocirurgião
Alexandre do Amaral, coordenador do Centro Multidiscplinar da Dor, no Rio de
Janeiro.
Volich, autor do livro Hipocondria:
impasses da alma, desafio do corpo (Ed. Casa do Psicólogo), acredita que a
maioria dos profissionais de saúde ainda ignora o hipocondríaco. Para ele,
parte dessa negligência se deve às atuais condições de atendimento. Por ter
pouco tempo para a consulta, o médico mal ouve o paciente, optando por fazer
uma bateria de exames para diagnosticar a “doença”. Sem encontrar nada de
errado, ele prefere encaminhar o caso para outro especialista. E assim o
hipocondríaco inicia a peregrinação por consultórios. Felizmente, há
esperança de que isso mude. “Bem devagarinho, os médicos estão prestando
atenção ao sofrimento de dimensão psíquica”, afirma. Segundo o
psicanalista, a hipocondria vai além do transtorno. “Cada vez mais o corpo se
presta a uma forma de representação, um modo de comunicação. Muitas
dificuldades na vida se manifestam pela via corporal”, explica. Quando a
pessoa passa a se sentir doente sem motivo é possível entender o problema como
um pedido de atenção. “O ideal seria que o médico perguntasse a história
de vida desse paciente, o que ocorreria numa consulta clássica”, afirma.
Desse modo, o profissional pode descobrir que as queixas nasceram de uma experiência
marcante e mal resolvida. Ou seja, se a pessoa evita lidar com o problema,
talvez o corpo seja obrigado a se expressar. E na forma de dor.
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