Para os estrangeiros, a tradição malgaxe da
famadihana, ou "virada dos ossos" - em que parentes de um defunto
exumam o corpo anos após a morte e dançam com o cadáver - pode
parecer assustadora.Mas, para a população da ilha africana, trata-se um ritual que
mostra respeito pelos antepassados e transforma a dor da perda em
alegria.
Não longe do vilarejo de Vatolaivy, uma multidão se reúne no alto
de um colina para participar do ritual. Eles estão acompanhados por
uma banda com clarinetes e trompetes, que está tocando há horas.
As pessoas conversam e sorriem, muitas estão bêbadas, a maioria
está dançando e por perto há camelôs vendendo cigarros e iogurte.
Mas é a sepultura na colina que concentra as atenções. Ou melhor,
os seus ocupantes.
Pedreiros chegam e retiram a porta de pedra da baixa estrutura de
tijolos ao redor da qual a festa está ocorrendo. E Roger, cujos
familiares estão enterrados no jazigo, me convida para entrar.
Dentro do jazigo, há várias camas de pedra, sobre as quais
repousam os pais e avós de Roger, enrolados em um tecido amarelado.
Dança
Roger me apresenta para os seus parentes formalmente, tocando
levemente cada corpo para identificá-los para mim.
Eu novamente encaro o sol do lado de fora. Atrás de mim, cada
corpo é carregado com cuidado para fora do jazigo e colocados no
chão pelos seus parentes.
As demais pessoas ficam em volta, assumindo o papel de
expectadores deste teatro familiar. Finalmente, a banda para de
tocar e um silêncio relativo paira no ar. Vejo uma menina abraçando
o corpo da mãe - ela não emite nenhum som, mas as lágrimas
atravessam seu rosto.
Em seguida, os parentes retiram o tecido que envolve os corpos e
o substitui por outro, novo, chamado lambas, bem caro por aqui
É então que o clima volta a ficar mais festivo.
Os cadáveres são levantados na altura dos ombros e, em meio a
risadas, os parentes os carregam e dançam com eles ao redor das
tumbas.
Depois de alguns passos, com um grito de alegria, os carregadores
levantam o morto ainda mais alto.
Eu percebo que a menina que estava chorando mais cedo agora está
sorrindo e fazendo piadas, como as demais pessoas. Como se, quase na
marra por causa das exigências do ritual, o luto tivesse se
convertido em alegria.
"É importante porque é nossa forma de respeitar os mortos", diz
Jean Pierre, um membro da família, sobre o ritual. "É também uma
chance de toda a família, de todo o país, se juntar."
Origens
A famadihana é uma tradição exclusiva de Madagascar e existe há
séculos. Antropólogos acreditam que ela mostra uma identidade da
ilha com tradições do sudeste da Ásia, de onde vieram os seus
primeiros colonizadores.
Para o antropólogo Maurice Bloch, que estudou o ritual, a idéia
da reunião entre mortos e vivos e a terra da família é a chave para
compreendê-lo.
Segundo ele, o ritual é uma evocação do "estar junto novamente",
uma forma de permitir que os mortos possam novamente experimentar as
alegrias da vida. Mas, mais importante que isso, a famadihana é um
ato de amor.
Mas alguns se opõem à prática. Nas cidades malgaxes, certas
pessoas consideram o ritual ultrapassado e fora de compasso com o
século 21.
Também houve problemas com missionários cristãos, que tentaram
acabar com o ritual - e hoje um número crescente de evangélicos está
abandonando a famadihana.
Mas, talvez surpreendentemente, a igreja católica, a maior do
país, não mais se opõe ao ritual.
Jean Pierre deixou claro qual pode ser o motivo disso. Em
Madagascar, essa "exumação alegre" não é uma cerimônia religiosa. É
uma tradição.
BBC Brasil