O homem em nova pele

 É sempre sexo. O resto é acessório. Ou acessórios, para ficar mais de acordo com o que parece ser uma daquelas mudanças duradouras que ocorrem nas grandes cidades e que, depois, levadas pela televisão, acabam chegando a lugares mais distantes. As pesquisas e estatísticas mostram que o que antes era definido apenas como "vaidade masculina", a preocupação dos homens com a forma física, os cabelos e as roupas, se tornou um movimento comportamental bem mais definido e complexo. Não é somente de aparência que se fala, mas de uma nova maneira de ver o mundo, de atuar nele de uma forma impensável para as gerações passadas. Como explica o psicólogo americano Alon Gratch, autor do livro Se os Homens Falassem: "O que está acontecendo, no fundo, é uma incursão masculina pelo universo feminino em quase todos os seus domínios. O mais visível deles, obviamente, é o da aparência. Mas a transformação é mais profunda". O homem começou a admitir que tem emoções e as esconde cada vez menos. Sente-se mais à vontade com suas preferências estéticas e valoriza com mais desembaraço o aspecto afetivo na relação com a família e os amigos.

Como todo movimento que se preze, esse tem sua barulhenta e colorida vanguarda. Fala-se aqui do que está sendo definido pela imprensa americana como o homem "metrossexual", termo criado em 1994 pelo colunista e crítico cultural Mark Simpson e que agora serve para descrever o heterossexual moderno e urbano, um sujeito tão ou mais vaidoso que as mulheres, que freqüenta butiques, usa cremes e loções para pele, é refinado na cozinha e não se sente por fora em uma conversa sobre decoração de ambientes.


David Beckham, jogador do Real Madrid e da Seleção Inglesa de Futebol, e o ator americano Brad Pitt podem ser apontados como símbolos dessa combinação de masculinidade, delicadeza quase feminina e um jeito de se apresentar que a poderosa Suzy Menkes, editora de moda do jornal International Herald Tribune, definiu nestes termos: "A barba está sempre cuidadosamente malfeita, a roupa artificialmente despojada, resultando em um conjunto com aparência geral de um caloroso refinamento". Não apenas pela aparência, é representante também do novo homem Tony Blair, primeiro-ministro inglês. A maneira leve como Blair combina a liturgia rígida do cargo que ocupa e sua vida familiar deixaria seus antecessores de cabelo em pé. Blair é um pai presente que gosta de ir para a cozinha e divide com a mulher, Cherie, a educação dos filhos.

O interesse pela "feminilização" do homem vai além das aparências. Uma busca no banco de dados Factiva, da empresa noticiosa americana Dow Jones, mostra 470 reportagens produzidas sobre esse novo tipo em todo o mundo só nos últimos seis meses. Uma delas, do jornal mexicano El Norte, lembra que o fenômeno pode ser observado nas grandes cidades do país e que ele seria a primeira "regressão consistente no machismo do homem mexicano". É um feito e tanto. Octavio Paz, escritor mexicano ganhador do Prêmio Nobel, escreveu que "o machismo está perdido na alma mexicana como em um labirinto", de onde não sairia nunca.

A extensão da mudança (e a popularização do termo metrossexual para identificar sua vanguarda) veio com a publicação de uma pesquisa feita pela agência européia de comunicação Euro RSCG Worldwide, que tem escritório em 75 países. A pesquisa mostrou que nas maiores capitais do Hemisfério Norte é significativo, como fenômeno social, o número de homens que usam regularmente cremes contra rugas, fazem compras em butiques e já se submeteram a algum tipo de plástica ou tratamento cosmético. Nos Estados Unidos, 35% dos homens disseram comprar regularmente cremes antienvelhecimento e, em apenas um ano, entre 2001 e 2002, o número de lipoaspirações feitas por homens cresceu 420%. No Brasil, o número de cirurgias plásticas realizadas em homens subiu de 10% do total para 30% em cinco anos. Grandes laboratórios de cosmética, como o Biotherm, venderam no ano passado, pela primeira vez, quase o mesmo volume de produtos para mulheres e homens. Os homens, na pesquisa, diziam sentir-se "másculos" desempenhando papéis tradicionalmente femininos, como cuidar de bebês. Nas gerações anteriores, conviver com os filhos pequenos, mesmo nos fins de semana, era ainda uma missão reservada à mulher.

Os homens também admitiram que lhes dava "enorme prazer" fazer compras. O número de lojas especializadas em roupas masculinas disparou. A RSCG descobriu que na Madison, a exclusiva avenida de Nova York, existiam nos anos 80 apenas duas grandes lojas de roupas refinadas para homens. Atualmente, a quantidade de butiques femininas e masculinas se equivale na Madison. "Os homens que formam esse novo contingente não são efeminados nem afetados. São corajosos em admitir as mudanças", diz Marian Salzman, estrategista-chefe da RSCG. "Eles se descrevem com adjetivos como heterossexuais, fortes e estilosos." Ou seja, os homens estão cada vez mais à vontade com suas conquistas estéticas.

"O que se define agora como metrossexualismo é apenas a ponta de lança de uma mudança maior. Ela é resultado da exploração corajosa que alguns homens fazem de seu lado feminino sem serem gays e sem medo de serem confundidos com gays", diz o psicólogo Alon Gratch. Segundo o estudioso americano, da mesma maneira que a revolução feminina se arrastou por um século até permitir às mulheres votar, fumar em público, escolher o marido, exigir prazer na cama e dirigir automóveis, a libertação masculina também vai tomar tempo até a emancipação. Há riscos no caminho. "Assim como as mulheres aprenderam com os homens a ser agressivas e muitas exageraram nisso, o excesso de valorização de si mesmo é uma armadilha do universo feminino que o homem deve evitar", disse Gratch a VEJA. Relativamente à mulher, o homem é considerado o sexo oprimido por alguns estudiosos do comportamento humano (veja entrevista). Mas já se andou um bom caminho. Gratch acha imprópria a tese, muito aceita, de que houve uma guerra dos sexos deflagrada e vencida pelas mulheres – e que os homens agora simplesmente se ajeitam no espaço social que lhes sobrou. Diz Gratch: "Estamos falando aqui de uma libertação masculina de costumes tão radical quanto foi a das mulheres. Os homens demoraram a aceitar que chorar, se emocionar, ser viciado em compras e proteger a pele com cremes não é defeito. Isso não os faz piores, mas modernos".

Definições comportamentais novas quase sempre parecem apenas mais um rótulo. Elas, no entanto, podem esconder algo mais complexo e onipresente. Em tempos de globalização turbinada, novos traços comportamentais surgem nas grandes metrópoles americanas ou européias e dali ganham o centro da corrente de propaganda, do marketing e, finalmente, da cultura, espalhando-se pelo mundo. A novidade agora é a velocidade com que isso acontece. A aldeia global é assim mesmo. As tendências atravessam fronteiras. Já era dessa forma no tempo das cidades medievais que, mesmo protegidas por muralhas, abrigavam populações de hábitos idênticos. Foi assim na Guerra Fria, que dividia o mundo em duas metades, a capitalista e a comunista. Quando em 1989 o Muro de Berlim foi derrubado, 28 anos depois de construído, os jovens dos dois lados eram muito parecidos. As pesquisas mostraram que, apesar das flagrantes diferenças socioeconômicas, os modismos, os preconceitos, as gírias e as táticas de abordagem sexual usadas pelos jovens das duas Alemanhas eram espantosamente semelhantes. Portanto, não é improvável que o que parece apenas um traço de comportamento de uma vanguarda ousada de uma minoria de homens de Londres ou Nova York já esteja perto do turco, do russo ou do grego.

Há tempos, com as mais diversas gradações, esse homem sem tanta armadura está nas ruas das cidades brasileiras, e não apenas nas novelas e nas revistas de moda e de fofocas. Ele apareceu nas empresas, nos bares, nas academias de ginástica. Faltava uma denominação de impacto e fácil utilização como metrossexual, inventada por Simpson. O filósofo americano Robert Bly vê nessa mudança certa influência dos gays sobre os heterossexuais. Ele lembra que faz enorme sucesso nos Estados Unidos um programa cujo título em português é O Olhar Gay sobre o Homem Hétero. Em um desses programas, homossexuais transformaram radicalmente a decoração da casa de homens heterossexuais. "O resultado foi muito apreciado pelos homens héteros", diz Bly, que até bem pouco tempo atrás era um dos críticos mais ativos do que o filósofo chamava de "amolecimento do homem" – um processo de resignação psicológica feito, segundo ele, para agradar à mãe e à esposa, especialmente depois que a mulher passou a ganhar mais dinheiro. "Concordo que agora é diferente", comenta Bly. "Os novos homens parecem mais livres e felizes do que o 'macho cordato' de uns anos atrás."

Na quinta-feira passada, Maureen Dowd, colunista de política do jornal New York Times, não perdeu a chance de perguntar a Arnold Schwarzenegger, candidato a governador na Califórnia, se ele se considerava metrossexual. "Metrossexual?", perguntou Schwarzenegger. Maureen explicou: "É um homem que gosta de atividades tradicionalmente femininas, como tratamentos faciais, manicures e de ir às compras". O grandalhão desconversou, mas a colunista notou que, pelos cabelos, pela pele e pelas unhas e roupas impecáveis, "claramente ele passa horas se embelezando". Schwarzenegger revelou à colunista que gosta de fazer compras para ele e para a mulher, Maria.

Eis o ponto. Há alguns anos os homens vêm se desfazendo de uma auto-imagem secular que ficou mais ou menos intocada até os anos 60. Segundo essa imagem, o papel do homem na sociedade era muito simples. Ele sustentava a casa e, em reconhecimento à atribuição de provedor, tinha o direito quase divino de mandar na mulher e nos filhos. Essa fortaleza de certezas vem ruindo aos poucos. Caiu primeiro na família, com a rebeldia dos filhos e a aprovação do divórcio. Depois no trabalho. Hoje as mulheres são maioria em muitas empresas e ocupam cargos de chefia em número muito superior ao de qualquer outro período da história. Finalmente, a fortaleza do homem ruiu nas relações interpessoais. As mulheres atualmente tomam a iniciativa das paqueras e as mais velhas e ricas escolhem os parceiros entre os indivíduos mais novos e mais atraentes. Até bem pouco tempo atrás, essa iniciativa era privilégio de homens. Não é mais.

Em compensação, o homem foi ganhando a liberdade de fazer outras coisas que pareciam privilégio das mulheres, entre elas o direito de se valer de todo o instrumental estético e médico para melhorar a aparência e adiar a velhice e até o de se interessar por moda e decoração. "Mulheres, é de dar medo. Eles cozinham melhor, vestem-se melhor e decoram a casa melhor do que nós", escreveu Sheerly Avni, redatora da revista de internet Salon.com, em um artigo sobre a multiplicação desse novo tipo de homem. Avni se lamenta com ironia e bom humor: "As mulheres passaram os últimos quarenta anos conquistando o mundo masculino. Aprendemos até a caçar. Hoje podemos matar um coelho a tiros, mas não sabemos cozinhá-lo. No pós-feminismo descobrimos que os homens agora são melhores em tudo o que julgávamos território exclusivamente nosso."

O homem descrito dessa forma representaria apenas o lado mais mercadológico de uma transformação mais profunda, porque também é mental, que alguém definiu brilhantemente como a transição do homem de "neandertal a ornamental". Por razões culturais específicas, a humanidade escapou da lei biológica segundo a qual o macho é o fator ornamental da espécie. Em quase todos os animais superiores, o macho, mesmo quando não é maior, é mais colorido e mais ornamentado exteriormente que a fêmea. Alguns estudiosos acham que o homem substituiu esse "pavonismo" exterior pela capacidade verbal. Ele a usa para impressionar a fêmea, assim como os bichos utilizam suas penas e juba. Com a intensa preocupação com a aparência, o homem estaria retomando agora seu papel ornamental. "Há um deslocamento extraordinário nas placas tectônicas dos sexos. Toda a nossa velha forma de pensar tem de ser revista", diz Barney Brawer, psicólogo-chefe do Boys' Project, da Universidade Tufts, nos Estados Unidos. O projeto de Brawer estuda as diferenças entre meninos e meninas, que ele avalia e compara em milhares de variáveis. Na contabilidade de Brawer, as mulheres estão muito à frente, do ponto de vista emocional e nas virtudes que ele associa à civilização, como a capacidade de conciliação e de desfrutar prazer estético. "Nós, homens, estamos hoje no estágio evolutivo da espécie em que as mulheres estavam há três décadas", diz Brawer.

O sociólogo e escritor alemão Dieter Otten afirma que não vê a hora de as características desse novo homem se tornarem predominantes na população masculina mundial. Otten é autor do livro Fracasso Masculino – A Relação dos Sexos no Século XXI, ainda sem tradução em português. Na obra ele defende com estatísticas a tese de que "a violência é masculina". O alemão lembra que, ao longo da história da humanidade, os massacres, homicídios e latrocínios são de responsabilidade quase exclusiva dos homens. Atualmente não é diferente. O crime organizado, o turismo sexual, o abuso de crianças e o vandalismo das torcidas esportivas, especialmente no futebol, são domínios masculinos por excelência. Os homens se destacam também na autoria de crimes mais cerebrais e requintados. Na Alemanha, 99% dos casos de estelionato e fraudes envolvem homens. Disse Otten em uma entrevista à revista alemã Der Spiegel: "Sem mulheres moralmente íntegras, altamente motivadas profissionalmente, com capacidade de desempenho e engajadas socialmente, o sistema econômico, político e social das democracias ocidentais já teria fracassado há muito tempo". Sob esse ponto de vista, portanto, nada mais desejável que os homens passem a dividir com as mulheres esse "papel civilizador" da espécie humana.

"Desvestir a fantasia de super-herói infalível é um alívio para a maioria dos homens e não uma perda de poder", afirma Luiz Cuschnir, psiquiatra paulista e o maior estudioso brasileiro da psicologia masculina. Na Alemanha, na França e, é claro, nos Estados Unidos, nunca se estudou tanto quanto agora o impacto das transformações pelas quais os homens estão passando. Em outra frente de estudo, a biológica, o homem também está no foco dos pesquisadores (veja quadro abaixo). As notícias não são muito boas para a classe. Em um estudo de Bryan Sykes, professor de genética humana da Universidade Oxford, a fonte genética da masculinidade – o cromossomo Y – está diminuindo de tamanho. Pelo cálculo de Sykes, a se manter a tendência atual, o cromossomo Y estará extinto dentro de 5. milhões de anos. Nada indica que, evolutivamente, essa tendência não venha a ser revertida em um prazo tão longo – ou que, mesmo se mantida, a natureza ou a ciência não venham a obter outras maneiras de produzir seres humanos do sexo masculino. Mas não há símbolo melhor do arrefecimento social do machismo e do surgimento de um novo homem.



 

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