A chave para o futuro da TV

É o conteúdo, segundo Boni.

Se ele realmente contasse tudo que sabe, seria uma bomba atômica no mercado. Ou um grande best-seller. "Ele" é José Bonifácio Oliveira Sobrinho, o Boni. Há exatos cinqüenta anos fazendo televisão, Boni criou praticamente sozinho os cânones brasileiros de TV. Ele se auto-define como um homem disciplinado. Em palestra para um auditório lotado durante o seminário da Associação Brasileira de TV por Assinatura, ele não se desviou do tema: conteúdo na TV brasileira.

O meio TV se encontra na sua mais séria encruzilhada, na véspera de transformações que serão desencadeadas pela palavra mágica "digital". A interatividade, a fluidez, a não-linearidade da programação são possibilidades no horizonte próximo. Uma excitante combinação de televisão e PC pode se tornar o padrão em todos os lares do mundo, ainda nesta década. Mas nada disso adiantará se as programadoras não investirem todas as fichas em conteúdos atraentes. Caso contrário, essa TV-PC não passará de um "gadget" -- luminoso, mas oco.

Boni disse que o negócio da TV (tanto aberta como paga) constitui-se exclusivamente da entrega de um conteúdo. E que esse conteúdo não é uma "commodity", algo que se compra em qualquer esquina. Conteúdo precisa de desenvolvimento, precisa ser elaborado e aprimorado. Parece uma platitude, uma obviedade sobre o meio, mas vindo de Boni essa questão é profunda e sutil. A rejeição ao mau conteúdo na TV brasileira já está levantando uma onda de reações, que podem trazer em discussão até a censura ou auto-censura de programas.

A TV, disse Boni, não é apenas uma indústria de entretenimento. É um setor com compromisso histórico com a cultura nacional. Boni lembra que a TV brasileira começou com um gesto de ousadia e esperteza de Assis Chateaubriand, que trouxe a tecnologia para o país quando não havia nenhuma disposição legal sobre o meio de comunicação. Chatô se adiantou a esse processo, tornando a televisão brasileira um fato consumado.

A doce responsabilidade. Com Walter Jorge Durst e outros, Boni repartiu a "doce responsabilidade" de produzir conteúdo para televisão "de qualquer maneira", no começo dos anos 50. Sua primeira responsabilidade foi produzir um programa humorístico às terças e quintas-feiras, após o 'Repórter Esso'. Sobre esse período, Boni disse que "a TV toda começou assim, com pessoas que não sabiam o que estavam fazendo".

Na época, lembra ele, havia entre 2 mil e 4 mil aparelhos de TV em S. Paulo. Equipamentos caros, todos na mão da classe A de então. Por isso era natural que Jorge Durst se preocupasse em adaptar Dostoievski, Shakespeare e produções clássicas de cinema para a TV.

Quando a base de espectadores se ampliou, no final da década de 50, a televisão estava vivendo sua primeira grande crise econômica. Nesse período, descobriu-se que importar programas era mais barato que produzi-los localmente. Foi, segundo Boni, um "massacre" de programas americanos que durou até meados da década de 60. Foi, segundo Boni, uma época de muita improvisação e uma certa picaretagem. Os programas anunciavam astros que não compareciam, os orçamentos eram cortados. Diante de um orçamento para um luminoso que seria usado num programa, o lendário Nereu Bastos disse "se neon desse audiência, todo mundo ficaria assistindo a padaria".

Masterson virou Beto Rockfeller. Por volta de 1965, 66, a MPB começou a explodir via TV e a telenovela se firmou como gênero de grande aceitação. Trocamos o Dr. Ben Casey por Marias e Lucinhas, e "Bat Masterson virou Beto Rockfeller". Por esse fenômeno, Boni diz que a TV brasileira começou de fato nos anos 60, e não na década de 50.

Boni menciona o elogio à telenovela brasileira feito por Domenico de Masi: "um fenômeno notável nascido em condições adversas". O Brasil venceu com programação própria uma tendência de colonização cultural que espalhou pelo resto do mundo. A produção de TV brasileira não tem paralelos no mundo e é um patrimônio cultural e econômico que deve ser valorizado em termos estratégicos. Estima-se que hoje o público das telenovelas seja de cerca 12,5 milhões de espectadores.

O comentário ecoa outro feito pelo escritor norte-americano Bruce Sterling, que viu na telenovela brasileira uma grande indústria cultural em botão. E sugeriu que essa indústria poderia explodir, se adaptássemos roteiros de países como a China e a Índia com produção e atores brasileiros e vendêssemos essas novelas para chineses e indianos (veja ao lado).

Boni disse que o investimento em produção nacional fez reverter a crise econômica do final dos anos 50. A TV começou a atrair talentos de outros meios e expressões. "Você não faz TV com pessoas viciadas em um formato, em um modo de agir", disse ele. Grandes autores como Dias Gomes, Walter Jorge Durst e Jorge Amado foram chamados para criar para TV. "Com a riqueza dos artistas brasileiros, conseguimos criar um conteúdo televisual sólido", disse Boni. E isso permitiu que a Globo se tornasse uma emissora muito forte e muito bem estruturada.

Boni cita uma experiência vivida com o sertanista Orlando Villas-Boas. Boni notou que os índios não se preocupavam em "educar" os filhos, do modo como a educação paternal é entendida pelo homem branco. Villas-Boas explicou que os índios "não ensinam nada aos filhos na cultura indígena, assim o filho pode ensinar algo a você". Isso quer dizer que devemos dar ao espectador a liberdade de escolha, para que possamos aprender com ele.

Nesse campo, a TV segmentada por assinatura tem um papel muito importante. Como criador do conceito original da Globosat, Boni disse que a TV paga brasileira cometeu todos os erros possíveis. "Criamos quatro canais para zero espectador", comentou em tom de brincadeira.

Boni disse que sempre acreditou no conceito de segmentação da televisão. A TV aberta é obrigada a atender todas as classes, sexos e idades. Se não fosse assim, a telenovela não conseguiria atingir 60 pontos de ibope.

A TV 'opcional' precisa encontrar caminhos, no momento em que a Globo tem 50% da audiência e 80% do faturamento publicitário. É um momento de oportunidade absoluta para a segmentação da TV por assinatura, levando-se em conta que a maioria dos outros canais abertos "chafurdam na lama", em seu desespero para conseguir audiência.

Boni disse que é hora de repensar a programação em termos estratégicos. Segundo ele, as pessoas querem ver programas brasileiros e só assistem outras coisas quando não há opções nacionais -- esse é o legado dos últimos 30 anos de Rede Globo.

Brasil devia investir em desenhos animados. Boni menciona o caso dos desenhos animados. Ele observou que os canais internacionais de desenhos estão em crescimento explosivo, mas que ainda não se criaram as condições ideais para a produção em escala de desenhos nacionais -- que certamente destronariam o Cartoon Network e seus similares. A questão é que os anunciantes entendem que o poder real de compra das crianças está na mão das mães, e ainda não se animam a investir nesses produtos.

Está na hora de desenvolver produções a preço adequado, para expandir a TV segmentada, disse Boni. Ele lembrou que os primeiros resultados positivos da TV surgiram quatro ou cinco anos depois de um planejamento sério de investimentos em conteúdo.

Boni disse que os preços praticados atualmente pelas operadoras são muito altos, o que não facilita o acesso das pessoas. "Se não mudar a atual política, a TV segmentada ficará congelada, e a TV aberta também, sem nada que conteste a merecida hegemonia da TV Globo", disse ele.

Boni disse não ter dúvidas que há muita qualidade na TV paga. Não se deve esquecer que no Brasil se começou a fazer TV por assinatura na correria, com medo que o governo proibisse as TV abertas de iniciar esse processo. Foi, segundo Boni, como criar uma rede de revenda de automóveis e fabricar salsichas em vez de carros. Além disso, a TV aberta não quer abrir seu espaço para a TV paga, porque teme acima de tudo um desgaste do seu modelo de negócios.

A importância da regionalização. "Na minha opinião, as operadas brasileiras devem resistir ao modelo internacionalizante. Minha preocupação é com a cultura nacional, e meios de proporcionar lucros aos investidores como programas derivados dessa cultura nacional. A TV Globo não foi feita com dinheiro. Começou num período de crise, era uma emissora em crise. O que se fez foi feito com criatividade e talento", disse Boni. "Eu passei 30 anos considerando o macro, o nacional, a mapa geral. E hoje vejo a importância do local, em encontros com pessoas nas ruas. Um caiçara de Caraguatatuba me disse para 'fazer a TV Vanguarda arrebentar'", completou. Boni disse ainda que "você vê toda essa explosão da cultura como uma maneira de crescer e não sucumbir ao modelo de um Primeiro Mundo que é profundamente injusto".

O futuro da TV. Boni disse que "devemos nos preocupar com o modelo de negócios da TV digital e o modelo de negócios para a transmissão de conteúdos via celular, que pode ficar fora do controle tanto das operadoras de telefonia como das TVs. Há hoje a tentativa por parte da emissoras de confundir TV digital com TV em alta definição. O principal argumentos das redes abertas americanas para conseguir autorização para "multiplexing" de seus sinais era a concorrência com a TV paga. Acho que não precisamos de high-definition, a questão no Brasil é outra. E emissoras como a Record e outras, o que vão fazer com quatro canais extras em seu sinal?", perguntou ele.

Boni disse que acha que o governo está apregoando uma tecnologia digital nacional apenas para estimular pesquisas que facilitem a adoção de uma ou outra tecnologia internacional. "Espero que não repitamos o erro desastroso de décadas atrás, quando foi adotado o padrão Pal-M para TV colorida", disse.

Boni terminou dizendo estar extremamente feliz com o fortalecimento da atenção sobre o espectador brasileiro. "A TV segmentada está no momento ideal para conquistar a casa dos brasileiros, uma vez que não há nenhum outro concorrente além da Globo", disse ele. [Webinsider]



 

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